Parecer da OAB diz que PL do aborto é inconstitucional e defende que, se aprovado, seja submetido ao STF
Documento da entidade critica projeto de lei: "Favorece o estupro como forma de dominação de homens sobre as mulheres"
Uma comissão especial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para análise do projeto de lei do aborto (PL nº 1.904 de 2024), que pode encarcerar vítimas de estupro por mais tempo que seus agressores, diz "que a proposta padece de inconvencionalidade, inconstitucionalidade e ilegalidade". Para as conselheiras, a proposta é "desconexa à realidade" e, se aprovada, deverá ter ação movida junto ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Em documento, a OAB considerou que "a abordagem punitivista e atroz do projeto de lei às realidades das mulheres em suas pluralidades" fere a igualdade. "O PL favorece o estupro como forma de dominação de homens sobre as mulheres, notadamente em relação às mulheres mais pobres", diz parecer obtido pelo SBT News.
"Todo o avanço histórico consagrado através de anos e anos de pleitos, postulações e manifestações populares e femininas para a implementação da perspectiva de gênero na aplicação dos princípios constitucionais é suplantado por uma linguagem punitiva, depreciativa, despida de qualquer empatia e humanidade, cruel e, indubitavelmente, inconstitucional", analisa o documento.
A cartilha de observações da entidade será entregue ao Congresso Nacional. A OAB também analisa que o PL do aborto ignora distânciamentos sociais do Brasil. "Além de simplesmente ignorar aspectos psicológicos; particularidades orgânicas, inclusive, acerca da fisiologia corporal da menor vítima de estupro; da saúde clínica da mulher que corre risco de vida em prosseguir com a gestação e da saúde mental das mulheres que carregam no ventre um anencéfalo", diz parecer.
Para exemplificar, conselheiras usam dados de pesquisas que apontam mulheres pretas como as que mais se hospitalizam por aborto, "sendo o público com maior frequência de gestantes adolescentes".
Por fim, analisam que "caso avance a proposta legislativa culminando na criação de nova lei, que o tema seja submetido ao escrutínio do Supremo Tribunal Federal por meio de ação de controle de constitucionalidade, a fim de reparar possíveis danos aos direitos de meninas e mulheres". A OAB pode realizar isso via ADI.
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI): recurso que questiona legislações que estão em desconformidade com os preceitos regidos pela Constituição Federal. Pode ser enviada por presidente da República, presidentes do Senado e Câmara ou de uma assembleia legislativa estadual, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Procuradoria-Geral da República (PGR), partidos políticos com representação no Congresso Nacional e entidades sindicais de esfera nacional.
- Comissão da Câmara aprova projeto que garante atendimento prioritário a vítimas de aborto espontâneo
O PL antiaborto por estupro
A proposta é uma iniciativa das alas mais conservadoras e religiosas, sobretudo evangélicas, do Congresso Nacional. Parlamentares querem "testar" a isonomia do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas chamadas "pautas de costume".
Atualmente, o aborto legal é permitido em três situações (independentemente do tempo de gestação): se o feto for anencéfalo (má formação que inviabiliza a vida fora do útero), quando impuser risco de vida à gestante e/ou a gravidez for decorrência de um estupro.
Com exceção desses cenários, o aborto é considerado crime. Na prática, a pessoa envolvida não vai para o regime fechado, mas responde criminalmente pela interrupção da gestação indesejada.
O texto em debate define:
- Pessoa gestante — prisão de 6 a 20 anos (pena mínima e máxima), independentemente se realizou a retirada do feto sozinha ou com auxílio de terceiro. Antes, era estabelecida pena de 1 a 3 anos em regime semiaberto ou aberto;
- Pessoa que efetua o aborto — diferentemente do que é hoje (quando se analisa a vontade da operada), a pena para quem realizar com o consentimento da gestante passa de 1 a 4 anos para 6 a 20 anos, mesma pena para quem realizar o procedimento sem consentimento (hoje fixada em 3 a 10 anos).
A proposta que tramita no Legislativo limita o direito ao aborto até a 22ª semana de gravidez, mesmo nos casos em que há permissão legal. Ou seja, em caso de estupro, por exemplo, a vitima passaria a ser obrigada a prosseguir com a gestação. A lei também valeria para meninas vítimas de violência.
A polêmica sobre assistolia fetal
Assim como na discussão sobre o porte de maconha, o assunto também é um ponto de embate entre Legislativo e Judiciário. Principalmente por duas ações:
- Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM): a entidade emitiu uma proibição de médicos realizarem a assistolia fetal em "casos de aborto previsto em lei oriundos de estupro". Em maio, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, suspendeu a resolução. Alegou que havia indícios de que o documento extrapolava os limites da legislação. A decisão será avaliada pelos demais magistrados em plenário.
A assistolia fetal é o procedimento em que se induz a parada cardíaca do feto a ser retirado. Há recomendação favorável da Organização Mundial da Saúde (OMS) para abortos em gestações acima de 22 semanas.
Em casos com menos tempo de gestação, o Ministério da Saúde orienta que o médico responsável ofereça à mulher a opção de escolha da técnica: abortamento farmacológico (induzido por medicamentos), procedimentos aspirativos (manual intrauterina) ou dilatação seguida de curetagem (raspagem de material na cavidade uterina).
O deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), autor do projeto de lei, disse no domingo (16) ao Uol que se o PSOL, partido autor da ação, desistir da judicialização do assunto, aceitará retirar o projeto de tramitação.
- Arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 442: há também no STF uma ação (ADPF nº 442) que pode descriminalizar a retirada do feto feita por gestantes com até 12 semanas. A ministra aposentada Rosa Weber, à época presidente da Corte, era relatora do processo e registrou voto a favor da descriminalização antes de sair do colegiado. Desde então, a ação está parada após pedido de destaque, movendo julgamento do plenário virtual para o presencial, feito pelo atual presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso. Ele afirmou não ter interesse de retomar o julgamento.
Para Barroso, não cabe neste momento ao STF decidir sobre uma prática a que a maioria da população é contra. No texto que justifica o PL, deputados utilizam parte do voto da ministra aposentada.