Brasil só cumpriu plenamente duas das 29 recomendações da Comissão Nacional da Verdade
Levantamento mostra que, 60 anos após o golpe e quase 10 anos após fim da CNV, país ainda tem muito a cumprir nas políticas de memória
Passados quase 10 anos da entrega do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, o Brasil só cumpriu plenamente duas das 29 recomendações propostas pelo colegiado. A conclusão é do Instituto Vladimir Herzog, que monitora a implementação das medidas pelo Estado brasileiro.
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Instalada em 2012, a CNV investigou por dois anos as violações aos direitos humanos praticadas pela ditadura militar no Brasil, que vigorou de 1964 a 1985. Além das conclusões, apresentadas em 2014 pelos sete conselheiros que integraram a comissão, o relatório final fez uma série de recomendações ao país, como a responsabilização civil, criminal e administrativa dos envolvidos, sem direito a anistia.
No evento de entrega do relatório, em 10 de dezembro de 2014, a então presidente Dilma Rousseff (PT) – ela mesma vítima de tortura durante a ditadura – disse que o trabalho da comissão ajudaria a afastar "fantasmas de um passado doloroso e triste".
"Nós, que acreditamos na verdade, esperamos que esse relatório contribua para que fantasmas de um passado doloroso e triste não possam mais se proteger nas sombras do silêncio e da omissão", disse Dilma.
Entretanto, quase 10 anos depois, não é bem isso que tem acontecido. Das 29 recomendações propostas ao Estado brasileiro, apenas duas foram plenamente cumpridas, segundo levantamento de 2023 do Instituto Vladimir Herzog (IVH). O relatório foi realizado ao final do governo Bolsonaro (PL), mas, de lá pra cá, pouca coisa mudou, afirma Rafael Schincariol, coordenador de advocacy do IVH.
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"O que nos parece mais claro que mudou é que a recomendação número 4, que falava da proibição da realização de eventos oficiais em comemoração ao golpe militar, vinha sendo descumprida, porque nós tínhamos atos oficiais do Ministério da Defesa celebrando o 31 de Março como um dia glorioso, como um dia em que a democracia havia sido salva, celebrando o golpe militar. Isso parou de acontecer. No mais, pouco se alterou", destaca Schincariol.
Uma das únicas recomendações seguidas pelo Estado, a revogação da Lei de Segurança Nacional, foi, para o coordenador do instituto, fundamental para a resposta aos atos do 8 de janeiro. É o lema "para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça" sendo seguido à risca.
"A revogação da Lei de Segurança Nacional foi absolutamente fundamental para que nós pudéssemos processar e julgar os golpistas do 8 de Janeiro. Porque a Lei de Segurança Nacional é revogada pela Lei dos Crimes Contra o Estado Democrático de Direito, e é essa lei que permite que possamos processar os golpistas", diz.
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Recomendação 26
A recomendação 26 do relatório da Comissão Nacional da Verdade fala da criação de um órgão permanente para dar seguimento às ações e recomendações do colegiado. Em abril de 2023, o ministro de Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, anunciou em uma audiência na Câmara dos Deputados a criação de uma comissão com esse objetivo.
Mas, até hoje, ela não saiu do papel. "Tínhamos expectativa de que ela fosse criada até o final do ano passado, não foi. Agora estávamos com a expectativa de que fosse criada no âmbito do aniversário de 60 anos do golpe militar, mas, ao que tudo indica, isso não vai ocorrer", diz Schincariol.
"Essa comissão não foi criada, nem a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos foi recriada. Esses são dois pontos que nos deixam muito preocupados com relação ao encaminhamento das políticas de memória por parte deste governo. No entanto, confiamos muito. O governo fez promessas, seguimos confiantes de que essa promessa será cumprida. Confiamos muito também no Nilmário Miranda e sua equipe e, por isso, vamos seguir cobrando", completa o coordenador do IVH.
Nilmário Miranda é o assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em entrevista ao SBT News, ele contou que precisaram "começar do zero" os trabalhos, após os quatro anos de Jair Bolsonaro (PL) na Presidência da República.
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"Não tinha orçamento, não tinha previsão dentro do Estado brasileiro de cumprir as determinações. Tem um trabalho intersetorial, interministerial e uma consciência de que tem que cumprir tudo isso", diz o assessor do MDHC. "Temos esse compromisso com a verdade, combater fake, combater a deturpação da história".
Schincariol também destacou as dificuldades de seguir as recomendações do relatório da CNV durante o governo Bolsonaro. "Não tínhamos nenhum tipo de diálogo com o governo anterior sobre esses temas. O governo anterior estava, inclusive, destruindo essas políticas. Entendemos a situação complexa do atual governo", diz.
Nilmário não respondeu se a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos será recriada, uma promessa do governo Lula. Porém, segundo ele, o Estado se responsabilizará por analisar todas as ossadas encontradas em cemitérios clandestinos, que estão divididas entre o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Unifesp, o laboratório do International Commission on Missing Persons (ICMP), que funciona em Haia, na Holanda, e a Universidade de Brasília.
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Defesa da democracia e fortalecimento do Estado Democrático de Direito
"Comissões da Verdade desvelam a verdade sobre as violações de direitos humanos com a ideia essencial de que aquelas violações – em nosso caso nós estamos falando também de um golpe militar, de uma ditadura –, de que as ditaduras, os golpes, não mais aconteçam", reflete Schincariol.
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E para que não aconteçam mais, é preciso processar e julgar aqueles cometeram crimes durante a ditadura, diz o coordenador do IVH. A Comissão Nacional da Verdade listou 377 agentes públicos envolvidos em violações de direitos humanos durante o período. Destes, 269 já morreram sem ter se tornado réus na Justiça.
"Leis de anistia não podem existir como leis de esquecimento, como leis de perdão. Graves violações de direitos humanos são imprescritíveis, então devemos processar e julgar os militares que cometeram graves violações de direitos humanos na ditadura", defende ele.