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Grupo empresarial ligado aos EUA foi protagonista do golpe de 64, diz pesquisadora

Lei que limitou o envio de lucro das empresas estrangeiras do Brasil para o exterior foi um dos motivos para a ruptura democrática no país

Grupo empresarial ligado aos EUA foi protagonista do golpe de 64, diz pesquisadora
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Um grupo empresarial brasileiro chamado Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPÊS), que recebia dinheiro dos Estados Unidos, foi protagonista, junto com os militares, do golpe de Estado no Brasil, em 1964. É o que aponta a pesquisadora Martina Spohr, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

"Eles foram protagonistas do golpe porque deram apoio logístico e participaram diretamente do projeto político [o regime militar] iniciado na sequência", explica

Segundo Martina, logo no início da ditadura, o governo brasileiro implementou reformas (administrativa e tributária) que partiram diretamente do IPÊS. O Instituto também contava com a participação de militares, mais notoriamente do general Golbery do Couto e Silva, idealizador do Serviço de Inteligência (SNI), principal órgão de informações usado pela repressão na ditadura. Segundo ela, suas ações eram feitas "embaixo do pano", enquanto a face mais pública cabia ao Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), também vinculado aos EUA.

Um ano antes do golpe, os dois institutos foram alvo de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar uma possível interferência nas eleições parlamentares, em 1963.

+ Reforma agrária e fantasma do comunismo: o que deu origem à ditadura no Brasil?

_General Golbery do Couto e Silva -  Miriam FichtnerMemorial da Resistência.jpg
_General Golbery do Couto e Silva - Miriam FichtnerMemorial da Resistência.jpg
CPI instaurada na Câmara dos Deputados para apurar denúncias sobre a interferência do IPÊS e do IBAD nas eleições parlamentares de 1962 Memorial da Resistência.jpg
CPI instaurada na Câmara dos Deputados para apurar denúncias sobre a interferência do IPÊS e do IBAD nas eleições parlamentares de 1962 Memorial da Resistência.jpg

Pela importância dessas associações, Martina diz que a ditadura brasileira deveria ser chamada de "empresarial-militar" – não apenas "militar". A pesquisadora cita como um importante antecedente do golpe o "Encontro Informal de Homens de Negócios", ocorrido em 1963. Nele, representantes do empresariado brasileiro (a maioria do IPÊS) e de outros países da América (Argentina, Chile, México, Venezuela, Uruguai, Peru e Costa Rica) foram até a Casa Branca, conheceram o então presidente John F. Kennedy e empresários norte-americanos. Na ocasião, eles reivindicaram uma união empresarial em prol da defesa da "empresa privada" – um tema particularmente sensível no contexto da Guerra Fria e da expansão da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

Encontro informal de Homens de Negócios -  ReproduçãoJohn F. Kenendy Library .png
Encontro informal de Homens de Negócios - ReproduçãoJohn F. Kenendy Library .png

Um dos temas tratados na reunião foram os possíveis impactos de uma reforma agrária, que, no caso brasileiro, estava na pauta do governo de João Goulart, mas não chegou a ser concretizada.

"Foi uma reunião política para debater a conjuntura internacional. Isso é sintomático porque mostra como esse empresariado transnacional estava 'militando' em prol da empresa privada e extrapolando os interesses dentro de seus próprios países, com uma preocupação em se aliar com empresários de outras nações", explica

Naquele período, o governo norte-americano desenvolvia a Aliança Para o Progresso. Com a promessa de dar suporte financeiro à América Latina, o movimento tinha o objetivo de evitar que os países da região aderissem ao comunismo, representado pela União Soviética. O envio do dinheiro era feito pelo Comap (Comitê Comercial da Aliança para o Progresso, na sigla em inglês), um órgão criado dentro do departamento de comércio norte-americano em 1962. Liderado por David Rockefeller, tinha a participação de outros 23 empresários, os mais influentes naquele período no país ,segundo a pesquisadora. A ideia era reivindicar maior influência do setor privado nos negócios da Aliança pelo Progresso na América Latina.

"Minha perspectiva é que havia dentro do empresariado americano uma intervenção direta na política externa dos EUA para a América Latina, a partir da intervenção do Comap", diz Martina. "Na verdade a Aliança para o Progresso foi uma estratégia política, não só econômica, do sistema capitalista liderado pelos EUA".
À esquerda David Rockefeller (Comap), à direita Paulo Ayres Filho (IPES) nos anos 70 -  Arquivo Paulo Ayres FilhoCPDOC.jpg
À esquerda David Rockefeller (Comap), à direita Paulo Ayres Filho (IPES) nos anos 70 - Arquivo Paulo Ayres FilhoCPDOC.jpg

Para ela, com a Aliança, os Estados Unidos conseguem criar uma dependência econômica nos países latino-americanos.

Segundo o professor de Relações Internacionais da PUC-SP Rodrigo Amaral, uma das principais motivações para a articulação do golpe brasileiro foi a chamada Lei de Remessa de Lucros, sancionada por João Goulart em 1962. Ela limitava o envio anual de lucro das empresas estrangeiras do Brasil para o exterior.

Amaral afirma que mais de 80 empresas brasileiras estavam envolvidas em espionagem e delação, apoiando o regime. Dentre elas as públicas Petrobrás e Telesp (antiga empresa de telefonia estatal em São Paulo), além de diversas companhias privadas.

Influência dos EUA na ditadura brasileira

Dentre as ações encobertas que os EUA realizavam no Brasil antes e depois do golpe, uma delas é o financiamento de partidos políticos de direita, segundo o professor da PUC. Quando o país era presidido por Jango, uma investigação no Supremo Tribunal Federal (STF) comprovou a existência de dinheiro americano nos partidos de oposição ao governo, sobretudo vindo de bancos. Um deles, Bank of Boston, chegou a ser impedido de atuar no país após a descoberta.

Além disso, segundo o professor, o primeiro presidente da ditadura, general Castelo Branco, era a opção preferencial dos americanos por ser amigo pessoal de Lincoln Gordon, embaixador americano que ajudou no desenvolvimento da Aliança para o Progresso.

Amaral lembra que, após Castelo Branco assumir, o secretário de Estado norte-americano Rean Dusk fez uma declaração oficial:

"Os Estados Unidos irão trabalhar ao lado do Brasil para promover a Ordem e o Progresso".

Durante seu mandato, Castelo Branco modifica a política externa brasileira para atender aos interesses da burguesia americana, segundo Amaral.

EUA defendiam ditaduras para evitar o "comunismo"

Outro fator que contribuiu para a ascensão das ditaduras, não só no Brasil, mas em todos os países que adotaram o regime ditatorial na América Latina, é a Guerra Fria. Segundo Rodrigo, o início dos governos autoritários coincide com um contexto específico em que os EUA estavam perdendo terreno internacional.

"O principal caso nesse sentido é Cuba, que passou por um processo revolucionário e se tornou comunista, bem no 'quintal americano'. Depois disso, eles investiram em uma política mais agressiva, afetando todos os países que estavam adotando uma agenda mais progressista. Os casos do Brasil e no Chile são bem notórios, como também Bolívia, Uruguai e Argentina", explica

Inicialmente, no caso do Brasil, os EUA apostaram na relação com Jânio Quadros, mas este realizou ações polêmicas como condecorar Che Guevara, um dos líderes da Revolução Cubana, com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, destinada a homenagear chefes de Estado. Quadros renunciou uma semana depois, em 25 de agosto de 1961. Jango assume nesse contexto e o país passa a estabelecer relações com China e Cuba, o que se torna uma ameaça aos norte-americanos, de acordo com Amaral.

Jânio Quadros e Che Guevara em 1961 -  Arquivo Nacional.jpg
Jânio Quadros e Che Guevara em 1961 - Arquivo Nacional.jpg

Ainda na década 50, acontecem intervenções na Guatemala e na República Dominicana. Martina aponta que o discurso de combater o "perigo vermelho" na verdade não era contra o regime comunista em si, mas contra formas políticas mais alinhadas à esquerda adotadas pelos países que, depois, passariam pelas ditaduras.

"Para os EUA, o que importa é que a dominação capitalista esteja garantida e que os empresários estejam resguardados no seu investimento. Não só nos anos 60, como na atualidade. O inimigo só vai mudando", explica

O final da Guerra Fria – a Queda do Muro de Berlim, em 1989, marca o fim de uma União Soviética há tempos em crise –, traz consigo o fim das ditaduras latino-americanas. A do Brasil, por exemplo, arrastou-se até 1985.

"Os americanos vão, digamos assim, diminuindo seu passo de apoio às ditaduras e começam a exigir processos de transição democrática", explica Rodrigo

Boa parte das ditaduras latino-americanas, como a brasileira, não acabam por processos revolucionários, mas segundo Amaral, pela falta de apoio da potência que ajudou a promovê-la.

Operação Condor: Brasil foi um grande aliado dos EUA

A Operação Condor, ação sistemática apoiada pelos Estados Unidos, com suporte direto da CIA (Serviço de Inteligência dos EUA), visava a repressão política, terror de Estado, compartilhamento de informações sigilosas entre governos e perseguição de opositores durante as ditaduras na América Latina. Ela funcionou como uma "espécie de solidificação institucional dos mecanismos que garantiam que os regimes militares ocorressem de forma regular e normal", segundo Amaral.

Ele explica que o Brasil teve papel fundamental em auxiliar os EUA, principalmente durante o governo do General Emílio Garrastazu Médici, na implementação de regimes ditatoriais em países vizinhos, sobretudo no Chile, na Bolívia e no Uruguai. A ideia era evitar a ascensão de partidos de esquerda, que poderiam inspirar movimentos revolucionários até mesmo em território nacional.

Informe 33477, do Centro de Informações do Exterior (CIEX), órgão subordinado ao Ministério das Relações Exteriores do Brasil, referente a Operação Condor - Arquivo Nacional.jpg
Informe 33477, do Centro de Informações do Exterior (CIEX), órgão subordinado ao Ministério das Relações Exteriores do Brasil, referente a Operação Condor - Arquivo Nacional.jpg
"É uma espécie de contrarrevolução, ou seja, eles promovem ditaduras para evitar que haja revoluções nesses espaços", disse

Segundo Martina, na prática, a operação representou ações diretas de extermínio e mortes dos opositores políticos.

Dia do golpe teve aparato militar norte-americano não utilizado

Um porta-aviões, quatro destroyers, cruzadores de apoio, 100 toneladas de munição, armas leves e gás lacrimogênio. Toda essa estrutura foi montada pela força naval norte-americana, em uma investida conhecida como Operação Brother Sam, para conter a população em caso de insurgência ao golpe de 1964.

"A ideia era garantir que, caso um golpe militar no Brasil não se sustentasse, os americanos ativariam a força naval, que estaria na costa brasileira, no ato da promoção do golpe", disse o professor da PUC.

No entanto, o aparato militar não precisou ser utilizado. A ação foi descoberta décadas depois do fim da ditadura.

Porta-aviões USS Forrestal (CVA-59) Porta-aviões USS Forrestal (CVA-59) -  ReproduçãoWikipedia.jpg
Porta-aviões USS Forrestal (CVA-59) Porta-aviões USS Forrestal (CVA-59) - ReproduçãoWikipedia.jpg
Destróier USS Charles R. Ware (DD-865) -  ReproduçãoWikipedia.jpg
Destróier USS Charles R. Ware (DD-865) - ReproduçãoWikipedia.jpg
Destróier USS Harwood (DD-861)) -  ReproduçãoWikipedia.jpg
Destróier USS Harwood (DD-861)) - ReproduçãoWikipedia.jpg
Destróier USS William C. Lawe (DD-763) -  ReproduçãoWikipedia.jpg
Destróier USS William C. Lawe (DD-763) - ReproduçãoWikipedia.jpg
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