Publicidade

Reforma agrária e fantasma do comunismo: o que deu início à ditadura no Brasil

Golpe militar brasileiro completa agora 60 anos. Pesquisas descobertas por historiador mostram que governo Jango não era impopular, mas sofria oposição de elites contrárias a reformas

Reforma agrária e fantasma do comunismo: o que deu início à ditadura no Brasil
Publicidade

Há 60 anos, a Beatlemania tomava conta dos Estados Unidos; o boxeador Cassius Clay se tornava Muhammad Ali após se converter ao islamismo; o Congresso americano autorizava o aumento da presença militar no Vietnã, escalando o conflito iniciado em 1955; as potências faziam progressos na corrida espacial, um das muitas disputas travadas durante a Guerra Fria, que polarizou o mundo por décadas.

No Brasil, essa polarização levava ao início de um período que durou 21 anos: a ditadura militar. O golpe militar de 1964 completa agora 60 anos. Em 31 de março daquele ano, o então presidente brasileiro João Goulart, mais conhecido como Jango, foi deposto, pondo fim à experiência democrática no Brasil.

+ 31 de março ou 1º de abril: Qual foi o dia do golpe militar?

Eleito vice-presidente nas eleições de 1960 – último pleito no qual o voto para presidente e vice era separado –, Jango teve um governo curto e conturbado após a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961. Entre as principais bandeiras de Jango estava a implementação das Reformas de Base: agrária, urbana e educacional. Ele também defendia a ampliação dos direitos trabalhistas e a melhoria das condições de vida da população mais pobre.

Ao longo da história, construiu-se a ideia de que o governo Goulart não era popular e, por isso, caiu. Mas, segundo o historiador Luiz Antonio Dias, isso não é verdade.

Em seu livro "Vozes de 1964: imprensa, militares e opinião pública", o professor da PUC-SP revelou pesquisas de opinião feitas pelo Instituto Ibope às vésperas do golpe, mas que não foram divulgadas à época. Nelas, o presidente deposto não só tinha amplo apoio, como era o favorito para vencer as eleições presidenciais de 1965.

"Por mais que se fale que o Goulart não tinha apoio, por isso caiu, as pesquisas mostram o oposto. Em uma pesquisa nacional do dia 9 ao dia 26 de março de 64, há aprovação da Reforma Agrária em várias capitais. Na Guanabara (agora Rio de Janeiro), ex-capital nacional, a aprovação da Reforma Agrária era de 82%. O menor índice coletado nessa pesquisa foi em Curitiba, onde 61% achavam que a reforma era boa", afirma Dias.

"Não tem quem contratou essa pesquisa nacional, então não tem como sabermos por que não foi divulgada. Mas, a minha ideia é que ela não foi divulgada porque isso enfraqueceria o movimento que possibilitou o golpe de 64".

Outra pesquisa descoberta pelo historiador foi encomendada pela Federação do Comércio de São Paulo (Fecomercio)e feita após o comício no Rio de Janeiro em que Jango apresentou suas reformas, em 13 de março. O levantamento mostra que, entre os mais pobres, 75% eram favoráveis às medidas anunciadas pelo presidente, enquanto entre os mais ricos, o apoio era de 50%.

"A mesma pesquisa tem outra pergunta. Se as pessoas acharam que eram medidas demagógicas, se eram medidas que levariam o país ao comunismo ou se eram medidas positivas. Só 16% achavam que essas medidas levariam o país ao comunismo e 55% achavam que eram medidas positivas para o país", revela Dias.

Mas, se tinha apoio popular, por que, então, Jango caiu?

Guerra Fria, Revolução Cubana e a "ameaça" comunista

Na época do golpe militar, o mundo estava dividido entre duas potências; os Estados Unidos, liderando o bloco capitalista, e a União Soviética, à frente do bloco comunista. Sem um confronto militar direto, os dois blocos mediam forças e influência no que ficou conhecido como Guerra Fria.

+Grupo empresarial ligado aos EUA foi protagonista do golpe de 64, diz pesquisadora

A Revolução Cubana, que aconteceu em 1959, instaurou um governo socialista na ilha a 144 quilômetros da costa norte-americana. Isso aumentou o temor de Washington em relação à disseminação do comunismo na América Latina, tida como aliada desde a Segunda Guerra Mundial.

Essa preocupação se refletiu no Brasil e contribuiu para a percepção de que líderes como Jango, que defendiam reformas sociais e econômicas, poderiam seguir o exemplo cubano. É o que explica o historiador Raphael Amaral, professor do Anglo Vestibulares.

"Naquele contexto, adotar uma postura autônoma, nacionalista, perante o interesse dos Estados Unidos significava ser acusado de fortalecer o comunismo", disse. "Foi exatamente o que houve com o governo João Goulart".

"O temor acabou gerando uma intensa e aguda oposição a Jango por parte da elite, dos setores mais conservadores da sociedade e de parte significativa da classe média. Chegou a um ponto em que pouco importava se ele era ou não um comunista. Foi colocada sobre ele essa pecha, e qualquer ação que ele adotava era julgada por esse olhar. Isso acaba fortalecendo bastante a instabilidade da época."
Colagem de capas de jornais da época
Colagem de capas de jornais da época

Papel da elite e da imprensa no golpe

Entre os principais opositores de Jango estavam as elites políticas e econômica, a classe média, setores mais conservadores da sociedade, e a mídia brasileira, que, em dado momento, apoiou abertamente uma intervenção militar no país, segundo o historiador Luiz Antonio Dias.

"Desde o início, o governo Goulart sempre sofreu duros ataques. A imprensa de forma geral, toda a grande imprensa, com exceção do jornal Última Hora, trabalhou para desestabilizar o governo Goulart", diz

+ Brasil só cumpriu plenamente duas das 29 recomendações da Comissão Nacional da Verdade

"A imprensa tem um papel importante, porque ela constrói essa ideia e fortalece esse pensamento em quem pensa dessa forma. A Folha, por exemplo, a partir de janeiro de 64, radicaliza e pede a intervenção dos militares constantemente. Isso hoje é usado para atestar a legalidade da 'revolução'", esclarece o professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Jango em histórico discurso na Central do Brasil | Acervo Lemad/USP
Jango em histórico discurso na Central do Brasil | Acervo Lemad/USP

Jango era retratado como um presidente incompetente, populista e com tendências autoritárias. Os índices econômicos do Brasil, que atravessava uma crise, também eram usados para reforçar essa imagem.

"Do ponto de vista econômico, muito se fala que o governo João Goulart foi ruim. O PIB de 1963, o último ano em que ele governa, fica abaixo de 1%. É baixo, mas é um PIB que vinha em queda desde o final do governo Juscelino, e a inflação já vinha em alta", explica Dias.

"É um governo que tem um desempenho econômico abaixo do que teve Juscelino Kubitschek, que é o anterior, mas não está muito abaixo do que se vê no governo do Castelo Branco (que o sucede)", completa.

Raphael Amaral destaca ainda que as medidas que Jango tentava adotar eram sabotadas de várias formas pela elite contrária a seu governo.

"Havia muita gente bem pouco disposta a contribuir ou colaborar para o governo João Goulart. Naquele contexto de disputa, o governo dele ser instável, não funcionar, era interessante politicamente para alguns setores. Isso fortalecia a narrativa de que ele era comunista e incapaz para o cargo".
Publicidade
Publicidade

Assuntos relacionados

Golpe Militar
Jango
História
entrevista
Brasil

Últimas notícias

Jovens que foram pajem e daminha se casam anos depois e viralizam nas redes; veja fotos

Jovens que foram pajem e daminha se casam anos depois e viralizam nas redes; veja fotos

Heloísa Oliveira, de 22 anos, compartilhou história inusitada no TikTok e publicação já tem mais de 2,3 milhões de visualizações
Lucas Paquetá é convocado a depor na CPI das Apostas no Senado

Lucas Paquetá é convocado a depor na CPI das Apostas no Senado

Chamada para prestar depoimento em outro caso, influencer e advogada Deolane Bezerra deve comparecer à CPI no mesmo dia que o jogador da Seleção
Furacão Milton: veja imagens da destruição

Furacão Milton: veja imagens da destruição

Fenômeno atingiu costa dos EUA, causando estragos em várias cidades da Flórida; Taylor Swift doou dinheiro para ajudar vítimas
Abin paralela: PF faz operação para prender suspeito de divulgar fake news que tinha acesso ao Congresso

Abin paralela: PF faz operação para prender suspeito de divulgar fake news que tinha acesso ao Congresso

Polícia Federal deflagrou nova fase da Última Milha, força-tarefa que investiga suposto monitoramento ilegal de autoridades no governo Bolsonaro
Idosa de 72 anos conhecida como "Vovó do Tráfico" é presa no interior de SP

Idosa de 72 anos conhecida como "Vovó do Tráfico" é presa no interior de SP

Prisão foi efetuada durante operação em São José do Rio Preto; ela assumiu posto do marido, preso neste ano
Ministério da Fazenda propõe mudanças para regular concorrência de big techs

Ministério da Fazenda propõe mudanças para regular concorrência de big techs

Proposta será enviada ao Legislativo e prevê dois grupos de atuação; Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) passaria a atuar como regulador
Nunes falta a debate e Boulos diz que vai incorporar proposta de Marçal ao plano de governo

Nunes falta a debate e Boulos diz que vai incorporar proposta de Marçal ao plano de governo

Atual prefeito da capital não justificou ausência, mas tem defendido um número reduzido de encontros
"Não é hora de votar isso", diz Jaques Wagner sobre mudanças na Lei da Ficha Limpa

"Não é hora de votar isso", diz Jaques Wagner sobre mudanças na Lei da Ficha Limpa

Líder do governo no Senado defende votação das eleições e sem valer para casos passados; veja entrevista do congressista ao SBT News
Vídeo: polícia salva cão abandonado amarrado antes da chegada do furacão Milton

Vídeo: polícia salva cão abandonado amarrado antes da chegada do furacão Milton

Cachorro da raça Bull Terrier já estava com as patas submersas quando foi localizado pela polícia de Tampa; Governador prometeu punir tutores
Candidata a vereadora suspeita de compra de votos e envolvimento com facção é alvo da Polícia Federal

Candidata a vereadora suspeita de compra de votos e envolvimento com facção é alvo da Polícia Federal

Investigada teria recebido uma grande quantia em dinheiro, entregue por membros da organização criminosa
Publicidade
Publicidade