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Aumento de feminicídios reflete resistência dos homens à autonomia feminina, diz especialista

Desde 2015, quando o crime foi tipificado, não houve nenhum ano em que o Brasil registrou queda no número desse tipo de violência

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Aumento de feminicídios reflete resistência dos homens à autonomia feminina, diz doutora em estudos de gênero | Foto: Freepik

A violência contra a mulher está no centro do debate público depois que diversos casos de feminicídios — ou tentativas de feminicídios — ganharam destaque no noticiário, dia após dia. Não é impressão: os episódios vêm aumentando, e o fenômeno reflete um problema grave.

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Ao SBT News, a doutora em estudos de gênero e políticas de igualdade Tammy Fortunato, que analisa casos de feminicídio desde 2015, quando o crime foi tipificado, afirma que não houve nenhum ano em que o Brasil registrou queda no número desse tipo de violência. Para ela, o dado reflete a resistência dos homens à autonomia feminina.

"Até pouco tempo atrás, a mulher ficava dentro de casa cuidando dos filhos, enquanto o homem era o provedor. Hoje queremos ter nossa liberdade, nosso dinheiro. Muitos homens não aceitam essa postura", diz Tammy, que é presidente da Comissão Nacional de Combate à Violência Doméstica da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
"Muitos homens querem mulheres que ainda sejam submissas à manutenção do patriarcado. Então, toda vez que nos tornamos independentes, que dizemos que queremos ir embora de uma relação, eles não aceitam isso. Não aceitam que essa mulher não dependa mais deles. Acham que têm posses", acrescenta.

Segundo dados do Anuário de Segurança Pública, o Brasil registrou 1.492 feminicídios em 2024, mas o número poderia ter sido muito maior. Nesse mesmo ano, houve também 3.870 tentativas desse crime. Se todas elas tivessem se consumado, o número total de vítimas fatais seria de quase 5.400.

O anuário de 2025 ainda não foi divulgado, mas dados das secretarias de segurança pública dos estados dão conta de uma amostra do problema. Na cidade de São Paulo, foram 53 casos de feminicídio, o maior índice anual desde 2018, mesmo sem contabilizar os meses de novembro e dezembro. O estado paulista registrou 207 casos.

Em Santa Catarina, os números também chamam a atenção e apontam uma ambiguidade: o estado foi reconhecido novamente como o mais seguro do Brasil, de acordo com o ranking do Anuário Cidades Mais Seguras do Brasil. No entanto, já soma 47 casos de feminicídio este ano. Enquanto outros crimes tiveram queda drástica nos casos, este permaneceu estável nos últimos cinco anos.

Os dados assustam porque "feminicídio" não é um "simples" homicídio de uma mulher. Enquanto este último pode ocorrer em situações diversas, não ligadas ao gênero da vítima, como uma operação policial, o feminicídio é o assassinato motivado pelo menosprezo ou discriminação à condição da mulher, muitas vezes num contexto de violência doméstica.

⚠️O conceito de "feminicídio" pode ainda ser classificado em dois tipos: o íntimo e o não íntimo. Enquanto o íntimo é cometido por um homem com quem a vítima tem ou teve um relacionamento afetivo ou familiar (marido, ex-marido, namorado etc.), o não íntimo é praticado por um desconhecido, sem qualquer vínculo prévio com a vítima.

Estado tem falhado

Tammy acredita que o Estado é o principal responsável na prevenção aos feminicídios. O Brasil adotou, em 1995, a Convenção de Belém do Pará, um tratado internacional de direitos humanos para "prevenir, punir e erradicar" a violência contra a mulher, mas tem falhado nesta missão. Por isso, em 2006, criou-se a Lei Maria da Penha.

Segundo Tammy, nem todos os feminicídios são preveníveis, mas a maioria é. O Anuário de Segurança Pública mostra que 8 em cada 10 feminicídios cometidos são do tipo "íntimo", ou seja, foram cometidos por homens que tinham alguma relação com a vítima. Esses são os mais simples de prevenir, e a solução está na educação.

A função do Estado na prevenção de feminicídios pode ser dividida em três: prevenir, socorrer e acolher. A prevenção é o trabalho que é, ou deveria ser feito nas escolas para ensinar os alunos a identificar e combater a violência de gênero. Tammy considera que os esforços nesse sentido têm sido insuficientes.

Atualmente, há uma única lei federal que inclui conteúdo sobre a prevenção da violência contra a mulher nos currículos da educação básica. Trata-se da Lei nº 14.164/2021, que criou a Semana Escolar de Combate à Violência contra a Mulher, realizada anualmente no mês de março em todas as escolas do país.

Na avaliação de Tammy, o Estado também tem falhado em socorrer as vítimas de violência de gênero. Isso porque, em muitos casos, elas são descredibilizadas na delegacia ao fazer uma denúncia e, quando recebem medida protetiva contra seus agressores, eles não são punidos ao descumpri-las. Por causa dessa omissão, muitas delas acabam morrendo.

Por fim, o Estado fracaça no processo de acolhimento, o que Tammy chama de "prevenção secundária". Como o próprio nome sugere, essa tarefa consiste em acolher as vítimas em casas de acolhimento e orientá-las. É nesse processo que muitas delas conseguem romper com o ciclo de violência e sair de relacionamentos abusivos.

Punitivismo não é a solução

Não é incomum ver pessoas revoltadas com o aumento no número de casos de feminicídio afirmando que as leis deveriam ser mais severas para esse tipo de crime. Inclusive, na terça-feira (2), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chegou a dizer que até mesmo a morte era uma punição "suave" para agressores de mulheres.

Tammy acredita, sim, que agressores de mulheres e feminicidas devem ser devidamente punidos conforme a lei — e defende, inclusive, a criminalização do movimento "red pill", que promove discursos misóginos na internet. Apesar disso, ela não acha que a solução para o problema passa pelo punitivismo.

Em outubro de 2024, o feminicídio deixou de ser uma qualificadora do homicídio e passou a ser tipificado em um artigo próprio no Código Penal. A pena prevista para quem comete esse tipo de crime é a maior de todo o Código Penal: de 20 a 40 anos de prisão. Ainda assim, essa mudança não levou à redução no número de feminicídios, pelo contrário.

"Homens matam mulheres quando estão cegos de ódio. Eles não querem saber se vão ficar 20, 30, 40 anos presos. Querem apenas acabar com a vida daquela pessoa, e não é a penalidade que vai mudar isso. É a educação", diz Tammy. "Este não é um processo que ocorre de um dia para o outro. Mas se não começarmos a prevenir, como vamos erradicar?"

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