"Não se sai imune": correspondente do SBT relembra viagens a Ucrânia e Gaza
Ao programa Retrospectiva, do SBT, Sérgio Utsch fala sobre a cobertura das duas guerras e o custo humanitário dos conflitos
SBT News
O ano de 2024 foi marcado pela continuidade e ampliação de dois conflitos que redefiniram o cenário geopolítico e humanitário global: a guerra entre Israel e o grupo militante Hamas e a ofensiva russa na Ucrânia.
O primeiro tem causado um impacto devastador na Faixa de Gaza – sede do Hamas –, afetando diretamente a população civil, a infraestrutura e as condições humanitárias. Já o outro teve a dimensão ampliada com a utilização de armas ocidentais pela Ucrânia e o envio de tropas norte-coreanas para auxiliar a Rússia.
No Retrospectiva SBT, o correspondente Sérgio Utsch, que foi para Israel logo após os ataques de 7 de outubro de 2023, relembra como foi o seu retorno ao país, em março deste ano. Ele ainda conta os bastidores das quatro viagens que fez a Kiev neste ano. Em uma delas, entrevistou o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky.
Guerra na Faixa de Gaza
A guerra em Gaza começou em 7 de outubro de 2023, quando Israel lançou uma ofensiva para responder a um ataque do Hamas que deixou 1,2 mil mortos e fez 250 reféns no sul do país. Desde então, o exército israelense vem lançando ataques aéreos diários na região, visando eliminar centros de comando do Hamas, assim como militantes do grupo.
Até o momento, Israel já anunciou a morte de mais de 10 líderes do Hamas. Foi o assassinato do chefe político do grupo, Ismail Haniyeh, contudo, que provocou maior repercussão. O líder estava em Teerã, onde participou da posse do presidente iraniano Masoud Pezeshkian, quando foi atingido por um ataque aéreo.
O ataque provocou reação do Irã, que vingou a morte de Haniyeh com o lançamento de cerca de 180 mísseis balísticos contra Tel Aviv e Jerusalém. Em resposta ao ataque, Israel bombardeou alvos militares em diversas áreas do território iraniano.
A troca de hostilidades entre os países gerou um temor na comunidade internacional de uma possível escalada do conflito em Gaza para o Oriente Médio. Esse risco aumentou ainda mais com o Líbano, que voltou a ser palco dos confrontos entre Israel e o grupo Hezbollah – aliado do Hamas –, quase duas décadas após a última guerra.
A tensão entre ambos voltou com a ofensiva em Gaza. Para demonstrar apoio ao Hamas na guerra, o Hezbollah começou a disparar projéteis contra Israel, que decidiu responder. Além dos ataques aéreos, Israel provocou a explosão de pagers e walkie-talkies usados pelo grupo, causando a morte de dezenas de integrantes.
Isso fez o Hezbollah lançar novos ataques contra Israel, o que provocou uma operação terrestre israelense no sul do Líbano. Como os confrontos começaram a resultar na morte de milhares de civis, os Estados Unidos e aliados conseguiram chegar a um acordo de cessar-fogo de 60 dias – entendimento que foi desrespeitado por ambas as partes.
“A ampliação desse conflito é uma grande aposta de Israel, de que enfraquecendo o Hezbollah e o Hamas vai reduzir o nível de ameaça a Israel. Contudo, a história mostra o contrário, porque você combate o Hamas e o Hezbollah, mas surgem outras lideranças. Portanto, essa ampliação do conflito, os ataques do Irã a Israel e Israel ao Irã, que também são inéditos, mostram que o que está ruim hoje pode ficar pior”, avalia Utsch.
Além da tensão geopolítica, a ofensiva de Israel em Gaza intensificou a crise humanitária na região. Isso porque os combates provocaram danos extensos a hospitais, infraestruturas de saneamento básico e energia, bem como em terras agrícolas. Um bloqueio imposto em Gaza por Israel também dificultou a entrada de ajuda humanitária.
O cenário, combinado com o deslocamento forçado de 90% da população, causou níveis elevados de fome e levou à alta propagação de doenças. Um levantamento do Programa Mundial de Alimentos (PMA), por exemplo, apontou que mais de 90% dos habitantes enfrentam insegurança alimentar grave, sendo 6% no nível "catastrófico".
"Não há dúvidas do que acontece na Faixa de Gaza. As imagens não deixam a menor sombra de dúvida de que é uma das piores crises humanitárias, uma crise que foi adjetivada, de várias maneiras, por autoridades do mundo inteiro, inclusive, pelo Brasil. Mas é uma das piores crises humanitárias deste século", comenta o correspondente.
Os combates resultaram ainda em um número alarmante de mortes. Até dezembro deste ano, o Ministério da Saúde de Gaza contabilizou 44 mil óbitos civis, provocados, sobretudo, por armas de efeitos amplos e, em alguns casos, por munições de fósforo branco. Grande parte do número de mortos é composto por mulheres e crianças.
"É muito doloroso reportar isso. Você não sai imune de um lugar desses. Tem todo um romantismo quando se fala em cobertura de conflito, mas isso tem um custo, porque você está reportando o desaparecimento de famílias inteiras, de pessoas, de crianças, que estavam ali numa escola ou num centro de refugiados”, diz Utsch.
“Presenciar isso, ainda que seja ali ao lado, ouvindo barulho constante de mísseis, de bombas, de bombardeios… a cada barulho desses que a gente ouvia, a gente fazia aquele cálculo. Quantas pessoas se foram agora? Quantas crianças se foram naquele barulho? É muito pesado. É muito pesado”, acrescenta o jornalista.
Ofensiva russa na Ucrânia
Assim como Israel e os grupos militantes, a Ucrânia tem um histórico de rivalidade com a Rússia – antes mesmo da queda da União Soviética, em 1991. A relação entre os países, contudo, começou a se intensificar em 2014, quando Moscou anexou ilegalmente a península da Crimeia – República Autônoma da Ucrânia – ao seu território.
Mas foi apenas em 24 de fevereiro de 2022 que o presidente russo, Vladimir Putin, autorizou a invasão na Ucrânia. Desde então, os países vêm travando batalhas diárias em busca de território, principalmente no leste ucraniano.
Neste ano, contudo, a Ucrânia focou além do campo de batalha. Utsch descreve 2024 como “o ano dos gabinetes”, o que, do ponto de vista geopolítico, foi importante para Kiev ampliar a comunicação com outros países. "Foi um ano em que os ucranianos entenderam melhor que não bastava apenas o apoio da Europa e dos Estados Unidos [na guerra]."
Mesmo com a ampliação dos laços, a Ucrânia continua vendo os Estados Unidos como principal aliado no conflito. Em novembro, Washington acatou o pedido do presidente Volodymyr Zelensky e permitiu a utilização de mísseis supersônicos para que o país atacasse alvos militares dentro do território russo.
Tal decisão mudou o curso da guerra, deixando a comunidade internacional em alerta. Isso porque, após a Ucrânia realizar o primeiro ataque com o míssil norte-americano, a Rússia atualizou sua doutrina nuclear, permitindo a utilização de ogivas em retaliação a agressões de Estados apoiados por potências nucleares – caso da Ucrânia.
Neste tópico, a Rússia ganhou um aliado poderoso: a Coreia do Norte – cujo arsenal militar e nuclear registrou um crescimento sem precedentes nos últimos anos. Mesmo com uma cooperação de anos, os países reforçaram os laços com um acordo de parceria estratégica, que prevê assistência mútua imediata em caso de agressão contra um dos países.
O acordo abriu uma brecha para Moscou receber cerca de 11 mil soldados norte-coreanos na fronteira. Apesar de ainda não terem participado ativamente do conflito, a presença dos militares provocou uma escalada na guerra, com a Ucrânia iniciando a busca por soldados estrangeiros para reforçar suas tropas. A França disse cogitar a ideia.
Segundo estimativas do Escritório das Nações Unidas de Assistência Humanitária (Ocha) mais de 11,7 mil civis foram mortos e cerca de 24,6 mil ficaram feridos desde o início da invasão russa. Ao mesmo tempo, mais de 6,2 milhões de ucranianos seguem vivendo em situação de refúgio, a maioria em países fronteiriços.
“Tão importante quanto a questão geopolítica, quanto o que os presidente falam, quanto o tipo de arma que é usada, a gente nunca pode esquecer que, por trás disso, tem gente, tem crianças morrendo, tem famílias sendo desintegradas. A gente não pode perder isso de vista, e é um dos esforços que a gente fez em 2024 e é o que eu pretendo continuar fazendo até eu parar de fazer isso”, diz Utsch.