Vidros filmados, 'geral' da polícia e as regras do tráfico: os bastidores da série da Cracolândia
Repórter do SBT Brasil relata como foi retratar os graves problemas do centro de São Paulo durante um mês de gravações
Na semana de estreia do novo formato, o SBT Brasil exibiu a série de reportagens especial "Centro do Crime". Os telespectadores ficaram sabendo como é a vida dos usuários e a ação da polícia na Cracolândia. O que os espectadores e leitores ainda não sabem é como é feito esse tipo de trabalho jornalístico. Aqui, contamos os bastidores da reportagem e como a equipe que conseguiu acesso ao fluxo do tráfico na região que todos em São Paulo aprenderam a evitar.
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Como nasceu a pauta
"A ideia das reportagens nasceu de uma conversa que tivemos, o produtor Robinson Cerântula e eu, no quiosque da Vanda, em frente à Delegacia Seccional do Centro. Ela tem o melhor chá com limão da região. A quantidade de crimes no Centro já chamava nossa atenção, quando o Robinson recebeu informações sobre um censo que a Polícia Civil estava fazendo na Cracolândia.
“Começamos gravando e fomos entendendo no meio do trabalho quantas matérias tínhamos e quais seriam. Tudo nasceu na rua, como deve ser”, conta Fábio Diamante.
A partir daí, começou um trabalho em equipe que durou mais de um mês. A gente foi coletando as informações sobre todos os principais problemas: tráfico, uso de crack, prisões sem efeito, milhares de dependentes químicos, roubos e furtos… Além do Robinson, tivemos a participação decisiva do repórter cinematográfico Claudenir Puga, que precisava captar em imagens todas as informações que apuramos. E isso é muito difícil na Cracolândia, porque o trabalho precisa ser feito sem que a gente seja visto. Por ninguém. Nosso objetivo era mostrar o dia a dia da Cracolândia sem que a nossa presença interferisse no que acontece – de fato – por lá. Os motoristas Rudney Chaves e José Luiz Salgado desempenharam um papel fundamental nessa missão: foram eles que definiram os melhores pontos para gravar em chamar atenção.
Começamos, então, gravando em torno do fluxo do crack. Do único jeito possível: dentro de um carro com vidros escuros, escondidos, por horas. Sempre mudando de lugar. Ficamos mais de um mês nessa rotina, durante o dia e à noite também. Isso resultou em duas abordagens, uma da Polícia Militar, outra da Guarda Civil. A chamada “geral”. Tudo dentro do esperado, porque nosso carro, estacionado perto do fluxo, com vidros escuros, numa região dominada por traficantes, acaba chamando a atenção mesmo. Não tem jeito.
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Foi assim, observando de perto o movimento, que percebemos o desvio das marmitas que a Prefeitura distribui para os dependentes químicos. Tão logo o veículo público se aproximava, a fila de dependentes se formava e, do outro lado da rua, os golpistas já estavam à espera. Munidos de moedas, compravam as refeições por preços módicos – para revender na sequência.
Testemunhas dos desvios, ficamos num impasse: tínhamos que seguir o homem que comprava a refeição dos dependentes químicos. Tentamos de carro, mas não deu certo porque ele ia a pé. Num segundo dia, Robinson e eu saímos andando atrás dele desde a Cracolândia. O Puga, nosso repórter cinematográfico, tinha nossa localização pelo celular e foi atrás da gente de carro com a câmera maior. Robinson e eu gravamos com o celular o trajeto todo. Quando o homem parou pra vender as marmitas, falamos com ele. O Puga estava numa esquina próxima dali nesse exato momento. Muitas vezes, não há uma segunda chance para captar um momento importante para a reportagem.
Um dos principais desafios para retratar a Cracolândia é justamente ter acesso à area, controlada pelo tráfico de drogas. Isso só foi possível com ajuda do médico psiquiatra Flávio Falcone, que há dez anos tem um projeto social na região.
“Ainda assim, algumas regras tinham que ser respeitadas. Não podíamos gravar na entrada e na saída do fluxo, nem registrar as barracas do tráfico. Difícil descrever o que é aquilo. É triste demais, uma das experiências mais marcantes da minha vida", afirma Fábio Diamante.
Depois de pouco mais de um mês de trabalho, enviamos o material bruto, centenas de horas de gravação, para o editor Thiago Dell'Orti, que assistiu cada imagem e se inteirou das informações todas. Foi ele que sugeriu os melhores caminhos para narrar, em cinco capítulos, as histórias que descobrimos na rua. Então, o conteúdo chegou ao editor de imagens Emerson Terin, que deu ritmo à reportagem. Vou ser repetitivo, mas é importante lembrar: é um trabalho em equipe.
E ninguém na equipe sai dessa experiência da mesma forma que começou. Depois de ver de perto tudo que vi, posso dizer que desespero é a melhor palavra para definir como vivem os dependentes químicos na Cracolândia. Infelizmente, tenho cada vez mais certeza de que não existe solução simples ou rápida para acabar com todo esse sofrimento.
“Aquelas pessoas estão lá por causa da desigualdade social e da incompetência absoluta dos governantes. Isso causa revolta também. As pessoas lá são condenadas facilmente, dizem que tudo é uma escolha. O que a gente esquece é que muitos ali nem escolha tiveram. É frustrante saber que a matéria vai ao ar e, naquele momento, aquelas pessoas continuam a sobreviver de forma tão desumana", diz Diamante.
Hoje, com 30 anos de carreira, não tenho mais a inocência de achar que uma reportagem vai gerar, na realidade, as mudanças que sonhamos. Ainda mais com um problema tão complexo como a Cracolândia. Mas, se conseguirmos fazer os bons pensarem e os maus perderem o sono, já fico satisfeito".
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