Mesmo com fake news sobre RS, Câmara segue sem criar grupo para discutir regulação das redes sociais
Processo estaria sendo travado por falta de indicação de nomes para compor o grupo por parte de partidos
Já se passaram 38 dias desde que o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), anunciou que criaria um grupo de trabalho para se debruçar na elaboração de um texto para regular as redes sociais, em substituição ao chamado Projeto de Lei (PL) das Fake News, mas até agora esse grupo não foi formalizado – mesmo com uma onda de notícias falsas nas plataformas sobre a tragédia no Rio Grande do Sul.
Uma regulação pode contribuir para o combate à disseminação desse tipo de conteúdo. O PL das Fake News, que já foi aprovado pelo Senado e cujo relator é o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Tem como objetivo, entre outras coisas, coibir a difusão de notícias falsas e discursos de ódio em ambiente virtual. Torna obrigatória a moderação de conteúdo na internet para serem identificadas, excluídas ou sinalizadas publicações e contas com conteúdo considerado criminoso.
No ano passado, entre os deputados, os bolsonaristas, que, no geral, utilizam as redes sociais para divulgarem as suas ações, foram os principais opositores do projeto. Passaram a chamar o texto de "PL da Censura". Em 9 de maio deste ano, Lira disse que, apesar de diversas tentativas para votar o Projeto de Lei das Fake News, nunca foi possível conseguir consenso para fazer a votação.
"Com todos os líderes presentes [na reunião hoje], inclusive o líder do governo, ficou acertado que o projeto não teria como ir à pauta", acrescentou Lira.
Ainda segundo o presidente da Câmara, com o grupo de trabalho, o objetivo é construir um texto que tenha a oportunidade de ir a plenário e ser aprovado "sem as disputas políticas e ideológicas que estão em torno do PL 2630/2020 [o das Fake News]".
"Ele está fadado a não ir a canto nenhum, por mais consideração que a gente tenha ao relator Orlando [Silva], por mais esforço que a gente tenha feito, nós não tivemos tranquilidade, e os líderes deixaram bem claro hoje, de apoio parlamentar para votação com maioria no plenário da Câmara", explicou Lira.
De acordo com o congressista, perder tempo com a discussão do texto, que não vai adiante, seria muito pior do que criar o grupo de trabalho para discutir um novo.
Entretanto, apenas parte dos partidos encaminharam nomes para compor o grupo e isso estaria travando sua criação, falou o líder do PCdoB na Câmara, Márcio Jerry (MA), ao SBT News.
"O presidente Arthur Lira disse que estava aguardando que todos os partidos encaminhassem as suas indicações, e metade das bancadas tinha encaminhado até anteontem [15 de maio], quando nós tratamos desse assunto pela última vez", declarou Jerry.
O PCdoB indicou o próprio Orlando Silva para participar. O anúncio foi feito pelo parlamentar no X (antigo Twitter) no último dia 8. "Semanas atrás, o presidente Lira sinalizou recomeçar a discussão sobre regulação de plataformas digitais e constituir um novo GT para essa missão. Na reunião de líderes, solicitou indicação das bancadas. Hoje, minha bancada decidiu propor o meu nome", escreveu.
"Fico honrado com a confiança e aguardo os próximos capítulos. A luta continua!".
Na última quarta-feira (15), participando de uma audiência pública na Câmara sobre um novo sistema de combate à disseminação de fake news, o presidente da Comissão de Comunicação da Casa, Silas Câmara (Republicanos-AM), disse que Lira estava se queixando de que o principal motivo de o grupo de trabalho não ter sido implantado ainda era os partidos não terem indicado seus membros, o que o parlamentar do Republicanos lamentou.
Um dos partidos que já indicaram foi o PDT. "Foi solicitado para mim a indicação do nome na semana passada, mas, o que eu posso te dizer, inclusive eu fiz uma coisa que eu não costumo fazer que, pela minha experiência, pela minha vivência, eu mesmo vou representar o PDT no grupo de trabalho", disse ao SBT News o líder da bancada, Afonso Motta (RS).
O parlamentar acredita que outros temas que geram tensionamento entre os deputados, como os desastres climáticos, a regulamentação da reforma tributária e o projeto para regular o setor de streaming estão contribuindo para o grupo de trabalho sobre a regulação das redes não ir para frente.
"Tem muita coisa de tensão nessas últimas semanas na Câmara. Então quando chega ali na hora do Colégio de Líderes, que fazemos parte, acaba prevalecendo aquele imediatismo. E o próprio grupo de trabalho da complementação da reforma tributária já deveria estar mais avançado, mas não estamos conseguindo", pontuou.
Notícias falsas sobre a tragédia
Somente o Projeto Comprova, iniciativa da qual o SBT News faz parte e que visa a descobrir, investigar e desmascarar conteúdos suspeitos sobre políticas públicas, eleições, saúde e mudanças climáticas que foram compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens, já apontou como enganosos seis conteúdos relacionados à tragédia no RS compartilhados em redes sociais.
Entre eles, uma publicação segundo a qual um programa criado pela Universidade de Alaska Fairbanks nos anos 1990 para estudar ondas na atmosfera esteja sendo usado para manipular o clima, gerando situações como granizo em um deserto da Arábia Saudita e as fortes chuvas no RS. Outro, um vídeo publicado no TikTok, dizia que os governos municipal, estadual e federal não estavam atuando em Canoas (RS) no dia 5 de maio, após a cidade ser atingida por enchente.
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Na última quarta-feira, a Advocacia-Geral da União enviou notificações extrajudiciais ao TikTok, X e Kwai com pedido para que removessem, em até 24 horas, publicações com desinformação sobre a entrega de cestas de alimentos no Rio Grande do Sul.
Segundo a AGU, as publicações diziam que as cestas básicas entregues a pessoas atingidas pela calamidade no território gaúcho seriam doações de particulares reembaladas com a logomarca do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A instituição ressaltou que isso já foi desmentido pelo poder público e serviços independentes de checagem.
No dia 8 de maio, a Polícia Federal (PF) abriu um inquérito para investigar a divulgação de notícias falsas na internet sobre ações governamentais em relação à tragédia no Rio Grande do Sul. A apuração foi aberta a pedido da Secretaria de Comunicação da Presidência, um dia antes.
Em discurso durante visita a São Leopoldo (RS) na últma quarta-feira, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto Barroso, disse ser "impossível não condenar a abominável onda de desinformação, de notícias falsas e de fake news a propósito do que está acontecendo no RS e do que está sendo feito no RS".
Ainda nas palavras do magistrado, "são criaturas das sombras, criaturas das trevas que sobre o sofrimento das pessoas projetam a sua maldade. Portanto, é impossível não sentir repulsa por, num momento grave como esse, as pessoas terem esse tipo de comportamento".
Para o líder do PDT na Câmara, não há dúvida de que a disseminação de notícias falsas sobre o que está ocorrendo no Rio Grande do Sul reforça a necessidade de uma regulação das redes sociais.
"Essa é a minha posição, sou a favor. Claro, temos que debater, discutir, olhar o que está sendo feito mundo afora. Acho que o Brasil não é um caso isolado, o mundo está dividido, tem um debate profundo, tem um debate tensionado, então nós temos que achar caminhos, temos obrigação de encontrar caminhos", acrescentou.
De acordo com o líder do PCdoB, essa disseminação "é mais uma prova concreta, absolutamente incontroversa, dos prejuízos e dos danos graves que as fake news causam na política, na vida em sociedade e até em meio a tragédias". "Então isso reforça a necessidade da regulação, sim, das redes sociais".
Também à reportagem, o líder do PV na Câmara, Luciano Amaral (AL), afirmou que "a regulamentação das redes sociais é necessária no mundo virtual em que vivemos hoje". "Fake news é crime e precisa ser combatida com pulso firme, não só aqui no Brasil, mas em todo o planeta".
Ele pondera que o combate a esse tipo de conduta "é sensível e precisa de muito estudo e discussão para melhorar o ambiente virtual, sem prejudicar, claro, a economia brasileira e, principalmente, a liberdade de expressão". Ainda conforme Amaral, "a quantidade de desinformação potencializada pela internet tem causado impactos negativos graves na vida das pessoas. Um exemplo recente é a tragédia que assola a população do Rio Grande do Sul"
O parlamentar do PV prossegue: "Diariamente, não só os afetados, mas também os órgãos públicos mobilizados no suporte à região têm sofrido com essas informações inverídicas. Não podemos perder a essência da internet, que deve ser usada para o lado positivo e para construções". Amaral espera que os congressistas encontrem soluções para avançar em um entrendimento comum sobre a regulação das redes.
Regulação com olhar sobre diferentes temas
O professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor em direito civil e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS), Carlos Affonso de Souza, ressalta que "o caso do Rio Grande do Sul revela como a questão das notícias falsas não se restringe ao período eleitoral e aparecem a cada oportunidade de gerar ganhos políticos em cima de acontecimentos com repercussão nacional".
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Para o especialista, a regulação das redes sociais precisaria ser feita "não apenas com um olhar sobre desinformação, mas também sobre temas como moderação de conteúdo e transparência das plataformas".
Ele acrescenta, porém, que uma regulação jurídica é apenas uma das medidas que podem ajudar a melhorar o ecossistema de informações na atualidade.
"Uma nova lei precisa ser vista juntamente com questões de educação midiática, a implantação de ferramentas tecnológicas e uma investigação cada vez mais aprofundada sobre os modelos de negócios que cresceram com a monetização das notícias falsas. Uma lei sozinha não resolve todos esses problemas".
Carlos Affonso de Souza avalia que o Congresso Nacional "já está atrasado no enfrentamento do tema".
"Embora o PL 2630 me pareça que estivesse precisando de ajustes importantes para que pudesse enfrentar os temas que ele se propunha a combater, o abandono da pauta no Congresso é um mau sinal".
Na visão da especialista, com a "inércia" do Congresso, provavelmente o Supremo Tribunal Federal buscará endereçar alguns dos temas em futuras decisões.