'Hora de se levantar é agora': juíza de NY que desafiou Trump denuncia desmonte de políticas de gênero nos EUA e elogia Brasil
Em entrevista exclusiva ao SBT News, magistrada símbolo da resistência democrática nos EUA detalha situação interna e diz que Brasil é exemplo para americanos
Sofia Pilagallo
"Se há um momento da história moderna para nos levantarmos e lutarmos, é agora." As palavras são de Karen Ortiz, de 53 anos. A juíza, de Nova York, se tornou símbolo de resistência ao governo de Donald Trump após ser demitida de uma agência federal por se posicionar contra diretrizes inconstitucionais. Hoje ela denuncia a o que considera uma repressão instalada no governo.
Em entrevista exclusiva ao SBT News, Karen elogiou a postura do Brasil na defesa da soberania nacional e dos valores democráticos, em meio a uma sequência de ataques e sanções do governo Trump a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e outras autoridades brasileiras. Esta é a primeira vez que ela fala a um veículo jornalístico brasileiro.
Até maio deste ano, Karen trabalhava, havia sete anos, na Comissão para a Igualdade de Oportunidades no Emprego (EEOC, na sigla em inglês), responsável por investigar casos de discriminação no ambiente de trabalho nos Estados Unidos. Depois da volta de Trump ao poder, a agência passou a "despriorizar" casos envolvendo queixas de pessoas trans. A política não era velada, mas explícita, e fora repassada formalmente aos funcionários.
Ao se deparar com a orientação, comunicada por e-mail, Karen soube que precisava se posicionar, e assim o fez. Em um ato de coragem, ela escreveu duas mensagens a Andrea Lucas, presidente da EEOC. A juíza afirmou que as ações eram "ilegais e inconstitucionais" e que Andrea não estava "apta" a ser a presidente da agência, "muito menos exercer a advocacia". Depois, ressaltou que não comprometeria sua "ética" e "dever de cumprir a lei".
"Não me acovardarei diante de intimidação e bullying. De ninguém", disse Karen, em e-mail enviado com cópia a mais de mil colegas. "Amo todos os humanos neste planeta. Mesmo aqueles que detesto. Sinto um amor que parece que você nunca conhecerá. Porque quando você ama outras pessoas, você faria qualquer coisa para salvá-las de um tirano", acrescentou. Um mês depois, ela foi demitida por "conduta imprópria".
À reportagem, Karen relata intimidações do Departamento de Eficiência Governamental (Doge, na sigla em inglês), inicialmente liderado pelo empresário Elon Musk — que ela alega ter sido criado para "desmantelar as instituições americanas" —, afirma que não será silenciada e diz que os EUA deveriam se inspirar no Brasil, exemplo de democracia para o mundo.
Leia os principais trechos da entrevista:
No Brasil, o ex-presidente Jair Bolsonaro foi condenado por golpe de Estado, e jornais do mundo todo disseram que o Brasil deu ao mundo uma lição de democracia. Nos EUA, isso não aconteceu. Você teme pelo futuro da democracia americana?
Temo. Mas acho que esses exemplos que estamos vendo em outras partes do mundo servirão de inspiração para muitos americanos. O discurso de Lula na ONU foi realmente poderoso.
Foi uma acusação contra Donald Trump, Stephen Miller [vice-chefe de Gabinete da Casa Branca], Elon Musk e todas as pessoas que usaram Trump para impulsionar sua própria agenda antiamericana. Estou inspirada pelo discurso dele.
Acho que o que aconteceu no Nepal também é muito inspirador. Acho que assustou a extrema direita. É por isso que eles [os conservadores] estão agindo de forma ainda mais insana.
Se tenho medo? Sim, temo pela nossa democracia. Mas também tomei a decisão de lutar pelo meu povo. Não irei embora. Sei que isso não é uma opção. Estou disposta a morrer, se necessário, para defender meus semelhantes desse mal.
É uma ameaça real. Mas estou nessa luta até o fim. É intenso. É intenso chegar a essa conclusão.
Acho que alguns dos meus amigos e familiares estão tipo: "Uau". E eu disse: "Não, sabe, esse é o momento em que estamos vivendo." Aceitei o fato de que, em alguns aspectos, serei um ancestral. Tenho que fazer o trabalho agora, mesmo que não esteja lá para ver os frutos desse trabalho.

O que você achou das sanções que Trump impôs ao Brasil?
As tarifas são absurdas, mas sinto que Lula acertou em cheio. Ele mostrou que não demonstrou medo, e foi isso que eu realmente entendi do discurso dele hoje: ele não demonstrou medo, acredita no seu povo e está lá por ele.
Então, acho que, embora este seja um momento realmente assustador e perigoso neste país, sinto uma esperança tremenda.
Vejo em mim um ativismo e uma conscientização crescentes sobre o que está acontecendo. E sei que muitos outros americanos estão acordando, estão chegando à conclusão de que esta é realmente uma guerra de classes em todo o mundo.
Há muita solidariedade sendo construída entre diferentes pessoas em todo o mundo. Estou realmente esperançosa.
Como advogada, o que você achou, especificamente, das sanções impostas pelos EUA, por meio da Lei Magnitsky, ao ministro Alexandre de Moraes e sua esposa?
Esta não é exatamente minha especialidade, sou especialista em direito contra discriminação no emprego. Mas o que eu direi sobre Trump é que... ele não é inteligente. Ele é meio idiota.
As pessoas que estão tomando essas decisões são como Stephen Miller, Russell Vaught [diretor de orçamento da Casa Branca], as pessoas da Heritage Foundation que criaram o Projeto 2025 [lista de desejos dos conservadores para o segundo governo Trump, que especialistas veem como um plano para abolir as instituições democráticas, acabar com a separação entre Igreja e Estado e impor uma agenda de extrema direita].
E quando você olha para quais são os objetivos deles, que é desestabilizar o mundo inteiro e se enriquecer. Honestamente, se eu fosse o resto do mundo, eu ignoraria. Tipo: "Não estamos ouvindo vocês." Vejam como eles desvirtuaram os tribunais e a lei em nosso próprio país.
Acho que a abordagem e a postura de Lula são exatamente a abordagem e a postura a serem adotadas. Denunciem. Não se acovardem. E fiquem firmes.
Mas, sim, é absolutamente ridículo. É um exagero, é a má aplicação das leis. Ninguém mais nos respeita. Não ficaria surpresa se o nosso dólar começasse a despencar.
Assim que assumiu o cargo, Trump emitiu uma ordem executiva decretando a existência de "apenas dois gêneros" e determinou outras medidas que puseram em xeque os direitos das pessoas trans nos EUA. Como isso impactou as políticas da EEOC?
Impactou-as diretamente. A presidente atual, que era presidente interina à época, incorporou esse discurso e começamos a receber diretrizes para despriorizar casos de discrminação contra pessoas trans. Os advogados do setor privado também passaram a ser instruídos a rejeitar casos que a própria EEOC havia movido em nome de denunciantes trans ou não-binários. Quase imediatamente [após a volta de Trump ao poder], começamos a receber essas ordens, que, para mim, foram absolutamente repugnantes.
O que te levou a enviar aquele e-mail que levou à sua demissão?
Fui criada para respeitar e defender todas as pessoas. Essa foi a educação que me foi dada. Como faço parte da minoria [ela tem ascendência porto riquenha e cresceu num bairro majoritariamente branco], sei o que é ser tratada de forma diferente e discriminada. Isso foi algo com que cresci.
Como advogada e juíza, é minha responsabilidade cumprir a lei e cumprir meu juramento à Constituição. Então, quando o decreto saiu, e depois as diretivas subsequentes da presidente interina da EEOC, não tive dúvida [sobre como agir].
Fiquei surpresa que quase ninguém mais se levantou comigo. Essa foi minha surpresa. Pensei que me levantaria e que o coro se juntaria a nós, dando fim a isso antes mesmo que ganhasse força. Mas, infelizmente, as pessoas estavam com muito medo.
Você poderia contar exatamente o que aconteceu?
Eu estava visitando minha mãe em outro estado. No voo de volta, verifiquei meus e-mails de trabalho.
Estávamos recebendo e-mails do Doge, que chamo de agência falsa do Elon Musk. Eles eram muito assediadores. Basicamente, tentavam fazer com que funcionários federais se demitissem ou nos intimidassem. Junto a isso, estávamos recebendo essas diretrizes para despriorizar casos de denunciantes trans e não-binários.
Enviei um e-mail ao escritório distrital de Nova York, onde trabalhava, e pedi às pessoas que não cumprissem essas ordens executivas porque eram antiéticas se ilegais. Também pedi aos meus colegas que rejeitassem o Doge, que, para mim, era apenas um grupo desonesto de pessoas que pretendiam, e ainda pretendem, desmantelar as instituições.
Quando pousei, verifiquei meu e-mail de trabalho novamente e percebi que o e-mail havia sido excluído da minha caixa de saída. Aparentemente, ele foi excluído das caixas de entrada de todos.
A única razão pela qual tenho uma cópia é porque um dos meus colegas pensou em tirar uma captura de tela. Então, alguém não só estava monitorando meus e-mails ou os e-mails da equipe, mas também os apagando, o que é ilegal, porque e-mails são considerados registros.
Isso nunca tinha acontecido antes?
Nunca tive nenhum e-mail excluído da minha caixa de saída ou de entrada. Então eu sabia que provavelmente era o Doge. Sabia que o EEOC já havia sido infiltrado àquela altura. Eu estava muito brava.
Na manhã seguinte, fui ao escritório já pensando no que escreveria. Eu iria gritar mais alto. Foi então que enviei um segundo e-mail para Andrea Lucas e praticamente todo mundo na agência. Dessa forma ele não poderia ser ignorado.
O e-mail vazou na internet. Até hoje não sei quem o fez e, honestamente, prefiro não saber. Mas alguém vazou. Foi parar no Reddit. Se tornou viral. Então, comecei a receber ligações da imprensa.

O que a EEOC alegou quando te demitiu?
Eles alegaram que eu tinha uma conduta imprópria, como funcionária federal, e que havia usado o e-mail indevidamente. Isso não é realmente uma infração passível de demissão. Não sofri nenhuma outra punição nos meus sete anos na EEOC, nos meus 14 anos como funcionária federal e, na verdade, em toda a minha carreira jurídica.
Então, o motivo pelo qual eles realmente me demitiram foi o fato de eu ter falado abertamente e me recusado a cumprir ordens executivas. Acho que eles também queriam assustar meus colegas e fazê-los se calar. E funcionou, infelizmente.
Como você reagiu à sua demissão no início?
Eu sabia que isso aconteceria porque vi como estavam me tratando. Me trataram como uma pária. Primeiro me colocaram em licença administrativa; depois, me notificaram com uma proposta de rescisão; e então, cerca de um mês depois, me demitiram.
Devo admitir que chorei uma vez. Mas não estava realmente chorando por mim, e sim por ver no que a agência estava se tornando.
Eu tinha muito orgulho do meu trabalho. Eu realmente amava ser uma juíza administrativa, ouvir as histórias das pessoas e poder dar algum alívio às pessoas que enfrentavam discriminação nos seus trabalhos. Então, foi de partir o coração. Mas chorei bastante e depois me recompus. Pensei: 'O trabalho continua, só vai ficar diferente.'
O que mudou em você desde sua demissão?
Por mais devastador que a demissão tenha sido, ela me libertou de muitas maneiras. Não sinto mais a necessidade de me comportar da maneira que eu deveria, como juíza. Agora não meço palavras, digo o que penso.
Se eu estiver errada, digo que estou errada. Estou aqui pelo ativismo imperfeito, e continuarei tentando melhorar a cada dia. Mas minha missão é que todos nós sejamos libertados.
Para mim, as coisas mais maravilhosas da vida são simplesmente conversar com outras pessoas, passear com o cachorro, fazer uma boa refeição, desfrutar da companhia uns dos outros.
E eu penso: o que há de errado com nossos líderes? Eles não entendem que esse é o propósito da vida, e não dominar os outros? Às vezes, isso me deixa realmente perplexa.
Você entrou com alguma ação judicial contra a EEOC?
No momento, tenho dois processos em aberto. Tenho minha própria queixa de EEO [sigla para Equal Employment Opportunity, ou Igualdade de Oportunidades de Emprego], uma queixa de discriminação. Não diz respeito à minha demissão, mas sim a eventos que levaram à minha demissão, coisas que foram ditas sobre a forma como fui tratada.
E tenho também tenho uma queixa e uma queixa com o que é chamado de Conselho de Proteção de Sistemas de Mérito, que é sobre minha demissão.
Tenho um escritório de advocacia formado apenas por mulheres. No momento, não tenho um grupo LGBT propriamente dito me ajudando, mas isso pode mudar.
Há também colegas e ex-colegas que têm seus próprios processos e disseram que farão tudo o que estiver ao alcance deles para me ajudar.
Mas essas queixas ainda estão meio que engatinhando e, às vezes, demoram um pouco. Então, vamos dar um passo de cada vez.
Qual foi a parte mais difícil de todo esse processo?
Não ter recebido o apoio que esperava. Devo ressaltar que alguns colegas me apoiaram, ainda me apoiam e acompanham meu trabalho. Um deles até pediu demissão no dia seguinte ao meu desligamento. Meus colegas queer têm sido incríveis e me procurado constantemente.
A parte mais difícil, no entanto, foi não ter recebido o apoio de outros juízes e advogados, que fizeram o mesmo juramento que eu. Entendo que as pessoas têm medo de perder seus empregos, seus salários. Elas têm famílias para sustentar.
Mas se há um momento da história moderna para nos levantarmos e lutarmos, é agora. E acho que as pessoas não percebem o tamanho do problema em que os Estados Unidos realmente estão.
Eu li o Projeto 2025. Sabia que ele estava chegando e estava mentalmente preparada para isso. Mas acho que as pessoas ainda estão um pouco em negação. Os americanos simplesmente não acreditam que isso vai cair na porta deles, mesmo quando está bem na nossa cara.
O que você diria aos colegas que sentem que estão tendo que comprometer seus valores para permanecer em seus empregos?
Há força nos números. Se você considerar apenas a quantidade de atenção da imprensa que consegui obter como uma pessoa só, imagine o que um grupo inteiro de nós, advogados, conhecendo a lei nessa área, sabendo se comunicar e tendo a boa-fé, poderia fazer. Isso seria ainda mais poderoso.
Mas diria também para eles se apoiarem no sindicato. Como funcionários federais, temos um sindicato. E, na minha opinião, o sindicato não está fazendo o suficiente. Não sei tudo o que acontece nos bastidores, mas é preciso pressionar o sindicato a fazer seu trabalho, a se posicionar. Acho que essa é uma maneira de, talvez, não se colocar como alvo direto, mas usar essa organização, à qual você contribui, para lutar.
É possível também falar com a imprensa, com jornalistas independentes, em condição de anonimato. Você pode divulgar informações como um denunciante, como uma fonte. Inclusive, eles são sempre bem-vindos para entrar em contato comigo se quiserem passar uma mensagem.
Nos últimos dias, o Pentágono impôs restrições a jornalistas e passou a exigir que informações passem por "aprovação" antes de serem publicadas. Você se preocupa com a liberdade de imprensa nos EUA?
Acho que estamos todos bem informados agora sobre as questões da grande mídia americana. Muitos de nós já nos distanciamos disso e migramos para uma mídia mais independente ou internacional.
Não acho que a grande mídia tenha o domínio que já teve. Acho que as pessoas estão procurando outras fontes e outras vozes. E acho também que estamos atingindo aquele limiar em que os americanos simplesmente não vão tolerar as restrições à liberdade de imprensa.
Veja o que aconteceu com Jimmy Kimmel [comediante que teve o programa suspenso após comentários sobre a morte de Charlie Kirk]. Eles tentaram silenciá-lo e as pessoas disseram "não". A partir de hoje [terça-feira, 23 de setembro], o programa dele estará de volta ao ar.
Quanto a mim, pessoalmente, encontrei qualquer plataforma. Eles nunca irão me silenciar. Não me importo se tiver que estar numa esquina com um megafone. Não serei silenciada. E acho que mais americanos pensam da mesma forma.
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