Número de trabalhadores com formação superior à exigida cresce no Brasil e revela desafios
Percentual saltou de 26% para 38% em 8 anos, mostra pesquisa do Ipea
Yumi Kuwano
Em um país onde 11,4 milhões de pessoas — 7% da população — são analfabetas, segundo o Censo Demográfico de 2022, há o outro lado da moeda. Quase 40% dos trabalhadores formais do Brasil são sobre-educados, ou seja, possuem escolaridade superior à exigida por suas ocupações.
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O estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), “A evolução da Sobre-Educação no Brasil e o Papel do Ciclo Econômico entre 2012 e 2023”, revelou que em 2012, cerca de 26% dos trabalhadores estavam nessa situação, percentual que cresceu para 38% em 2020, permanecendo estável até 2023.
De acordo com Sandro Sacchet, técnico de planejamento e pesquisa do Ipea, o estudo conceitua como sobre-educado o trabalhador que tem uma escolaridade maior do que a exigida pela sua ocupação, independentemente da quantidade.
“A pesquisa considera os anos totais de estudo e não separa em curso, nem a área de formação, por esse aspecto não é possível captar com a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua)”, explica.
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Em 2012, no caso dos trabalhadores com ensino médio completo, o percentual era 42%. Já para aqueles com educação superior essa taxa era de 28%. Esses dois grupos apresentaram aumentos significativos na sobre-educação durante os onze anos seguintes, sendo mais 9 pontos percentuais para o primeiro e 6 para o segundo.
O grupo menos escolarizado, mesmo com a queda da participação entre os ocupados, teve acréscimo de 6 p.p. na taxa de sobre-educação.
Oportunidades
A secretária Déborah Moreira, 31, é bacharel em Direito desde 2019. Enquanto estava na faculdade fez estágios em órgãos públicos e em dois escritórios de advocacia. Quando finalizou a faculdade não conseguiu trabalho na área. “Todos exigiam a carteira da Ordem (OAB), que eu não tenho por opção, pois quero passar em um concurso público”, conta.
Ainda durante a faculdade, ela também procurou um emprego, em qualquer área, para arcar com os custos dos estudos. “Eu achei trabalhos temporários de fim de ano no shopping, e assim surgiu a oportunidade de trabalhar como promotora de eventos lá por quatro anos”, diz. Depois ela foi contratada como secretária de uma empresa, onde não tem oportunidade de aplicar o que aprendeu durante os cinco anos no ensino superior.
“O mercado de trabalho precisa acompanhar os profissionais, com salários compatíveis e números de vagas, porque nós não estamos parados, estamos nos qualificando a cada dia. Até porque o mercado exige que você seja o melhor, se você é só ótimo, você está perdendo para um outro profissional que é melhor que você”, diz Déborah.
O professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) Erlando Rêses ressalta a disparidade entre o processo formativo escolar e a exigência do mercado de trabalho.
"A gente também pode apontar aqui o aumento da chamada desregulamentação das relações de trabalho. Há uma maior precarização da força de trabalho associada ao aumento, por exemplo, do setor informal. É comum, por exemplo, nós encontrarmos aí pessoas com curso superior atuando, por exemplo, dirigindo o Uber", comenta.
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Qualidade
Questionado sobre se a qualidade do ensino pode ter impacto nesse resultado, Sacchet disse que influencia no cenário atual e na dificuldade que algumas pessoas têm em encontrar bons empregos, mas o problema principal, no momento, é a falta de vagas compatíveis com a qualificação no país.
“Sem dúvidas isso tem impacto, mas não altera o fato existem mais pessoas com ensino superior do que ocupações que exigem ensino superior e mesmo que todos os formados fossem altamente qualificados esse gap continuaria existindo”, avalia.
Ou seja, mesmo que o ensino não seja de boa qualidade, já que existe o argumento de que com a abertura de muitas faculdades, o nível de formação entre os novos profissionais pode cair, ainda assim, esse trabalhador deve ter um salário superior ao que tem só ensino médio, conforme mostra a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), que retrata a realidade das profissões do mercado de trabalho brasileiro.
No entanto, Rêses argumenta que o conteúdo passado na sala de aula ainda está distante do mercado, o que pode influenciar na dificuldade do profissional em encontrar vagas.
“A gente tem uma formação que ainda se encontra distanciada do desenvolvimento da prática, infelizmente. Fora ações pontuais que estão aí, por exemplo, nos estágios supervisionados ou na extensão universitária, mas que de fato não dão conta da demanda exigida pelo mercado de trabalho”, opina.
Caminhos
Sacchet explica que a crise no país iniciada em 2014 teve um impacto significativo no resultado nos anos posteriores, mas avalia que a estabilidade observada em 2021, 2022 e 2023 mostra que o mercado tem conseguido melhorar, mas que é necessária uma mudança estrutural.
"O jovem está entrando no mercado de trabalho cada vez mais qualificado, e a tendência é isso aumentar a cada ano, já que essas pessoas com pouca escolaridade vão se aposentando e dão lugar aos novos e mais qualificados, e a estrutura da economia brasileira tem que acompanhar", analisa o pesquisador.
Segundo o professor UnB, resultado pode ser ainda mais preocupante, gerando um número maior de pessoas desempregadas e um impacto maior ainda na economia e sobre a vida das pessoas.
"É preciso investir mais no processo educativo. A gente tem visto, não só no governo passado, mas inclusive neste, corte de recursos para educação, o que não colabora para valorizar o trabalho docente. Então, estamos meio na contramão desse processo", opina Rêses.