"Lembro de fumar 72 pedras de crack numa noite": a história de quem venceu o vício
O depoimento de Perdigão, um homem que buscou apoio da igreja, do Estado e da família e conseguiu superar a droga
"Eu conhecia e entrava em quase todas as favelas de São Paulo, na Vila Formosa, Vila Ema, Vila Prudente, Vila Brasilândia, tudo, não tinha medo.
Entrava na quebrada de moto importada, em São Paulo e até no Rio de Janeiro. Quando eu chegava, sempre tinha fila para comprar a droga, mas o traficante já me conhecia e falava para eu cortar a fila. 'Passa, Perdigão'. Assim que me conheciam. Só que é aquilo, sou igual a todos. Pegava a fila como qualquer um.
+ Centro do Crime: Como atuam e quem são os traficantes da Cracolândia de SP
Se encontrasse com a Rota, nosso lema era: "se tomar enquadro, tem que mostrar. Se tentar enganar, já era". Quando a polícia chegava na biqueira, o povo corria e eu saía andando. De quem a polícia ia atrás, de quem estava correndo ou apenas caminhando?
Fuga
Quando eu estava de carro e a polícia corria atrás de mim, eu pegava toda a droga, acelerava e, na hora que fazia a curva, jogava tudo pela janela. Um único momento de ponto cego, a única brecha que tinha.
Depois eu parava o carro e jogava a real: "policial, vim comprar droga, o olheiro avistou e me avisou. Apenas isso". Na sequência, eles me liberavam.
Início do vício
Tudo começou na minha adolescência, quando eu tinha 15 anos e morava na Mooca, zona leste de São Paulo. Todos meus amigos tinham entre 18 e 20 anos. Eu era o mais novo e meu começo foi nas bebidas, queria curtir e ficar loucão.
Um ou outro que fumava maconha me perguntava: 'E aí, não vai fumar não?' Pronto, não preciso dizer mais nada.
+ Centro do Crime: Como o tráfico na Cracolândia se alimenta do dinheiro dos lixões
Eu não precisei de muito tempo para ver que a maconha não me fazia bem. De fato, era uma sensação de alegria, mas vinha acompanhada de muita lerdeza, moleza e me causava bastante ânsia. Em algumas fumadas, me afastei e fui direto para a cocaína. Aí eu tinha 16 anos.
Meu uso era recreativo, uma F (farinha) durava todo final de semana, não afetava meu social e muito menos meu profissional. Apesar de eu usar, eu não andava com os usuários e nunca quis andar com eles.
Jamais de minha parte ficar mal falado no bairro. Então sempre colava com os boys.
A grande diferença entre mim e os boys estava no comportamento, eles ficavam com os olhos arregalados, agitados pra lá e pra cá, ansiosos e elétricos a noite inteira, não vendo a hora de amanhecer para voltar para o bar, perambulando pela noite, por nada.
Nunca me comportei assim. Nunca alguém me falou: "nossa, hoje você tá estranho, né?"
10 anos vivendo desse jeito
Quando eu era mais velho, tinha 26 anos e morava em Foz do Iguaçu, Paraná, minha situação começou a mudar. Eu me lembro de me sentir paralisado, de ter um barato em que fiquei travado, não conseguia entender o que estava acontecendo e muito menos me mexer.
As três mulheres que estavam ao meu lado ficavam dando risadas e me zoando, mas me consolando também. Elas diziam: "relaxa, a primeira vez que você usa crack é assim mesmo".
+ Médico se veste de palhaço para ajudar dependentes químicos na Cracolândia
Neste dia, eu falei pra mim: nunca mais vou usar isso.
Eu tinha 29 anos quando voltei para a Mooca e meu uso recreativo de cocaína ficou no passado. Nos finais de semana eu dizia: 'vamos à forra'. Meu consumo começava na sexta e acabava na terça ou se iniciava na quarta e ia até o domingo.
Quando minha situação começou a ficar descontrolada, eu já queria algo mais forte. Eu queria o crack.
+ Danos do crack para a saúde podem ser irreversíveis; conheça os efeitos da droga no corpo
Eu cheguei na fase de querer ficar perambulando, querer ficar louco, apenas por ficar. Eu já tinha a certeza de ter atingido o lugar mais fundo do poço possível. Você perde o valor de tudo. Você vive para usar a droga e mais nada.
Eu devia para minha tia, para meu irmão, para o meu pai, para bancos e meu carro que custava R$ 15 mil tinha R$ 12 mil de multas. Essa é a parte financeira. Eu voltava sujo, fedido e me desconhecia.
Em uma noite dessa vida, achei que fosse morrer. Atingi meu ápice. Cheguei ao ponto de começar a vomitar fumaça. Lembro de fumar 72 pedras de crack naquela madrugada.
Quando tinha 32 anos, eu voltei. Voltei para a realidade. Eu contei. Na cozinha de casa, pedi ajuda para minha mãe, para meu pai e meu irmão. Queria sair desse mundo vazio. Neste momento começava minha batalha contra eu mesmo.
Caminho de volta
Igreja, NA (Narcóticos Anônimos), CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas), minha família e meu filho.
Eu precisava da ajuda espiritual, entender que não dependia só de mim. Precisava de uma fé, alguma coisa sobrenatural que me fizesse acreditar e encontrei isso na igreja.
Eu precisava ver que existiam outras pessoas em situações muito mais difíceis que a minha. Não sou melhor e nem pior que ninguém, apenas queria aprender que isso podia acontecer com qualquer pessoa. Descobri isso no NA.
Comecei a entender a parte técnica, como cientificamente a droga atacava o cérebro, que precisava de um médico e acompanhamento, e tudo isso recebi no CAPS AD.
A família me dava apoio incondicional, aquilo que qualquer ser humano precisa. E por último, o mais importante de todos, era meu filho. Ele era o motivo que me fez lutar pela vida, que me fez querer viver, o motivo de não desistir e conseguir sair daquela merda de guerra.
Hoje eu tenho 46 anos e não volto nunca mais para essa vida.
São quase 15 anos de uma batalha vencida."