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Especialistas criticam projeto que acaba com "saidinha" de presos em feriados: "Retrocesso"

Texto ganhou força devido à morte do PM Roger Dias da Cunha, baleado na cabeça, em Belo Horizonte, por um criminoso que deixou a cadeia durante a saída temporária de Natal

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Presos em "saidinha" (Antônio Cruz/Agência Brasil)
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Aprovado nesta semana na Comissão de Segurança Pública (CSP) do Senado e pronto para ser votado no plenário da Casa, o Projeto de Lei (PL) que acaba com as "saidinhas" de presos em feriados e datas comemorativas, mantendo o benefício da saída temporária apenas para inscritos em cursos de educação ou profissionalizantes, é criticado por especialistas ouvidos pelo SBT News.

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O texto ganhou força nas últimas semanas por causa da morte do policial militar Roger Dias da Cunha, de 29 anos, baleado na cabeça, em Belo Horizonte, por um criminoso que deixou a cadeia durante a saída temporária de Natal.

A versão do projeto aprovada na Comissão de Segurança Pública, a partir de uma emenda do relator, senador Flávio Bolsonaro, dá à lei a ser criada, inclusive, o nome de Lei Sargento PM Dias.

Na CSP, para defender o PL, o relator e outros senadores da oposição, como Sergio Moro (União-PR) e Eduardo Girão (Novo-CE), destacaram que vários presos não retornam ao presídio após a saidinha.

Pelo menos 250 detentos não voltaram ao sistema prisional do Rio de Janeiro após o benefício no último Natal. Entre os foragidos, estavam chefes do tráfico de drogas.

Em entrevista ao Poder Expresso, do SBT News, o presidente da CSP, senador Sérgio Petecão (PSD-AC), defendeu o projeto e disse que ele foi discutido pelo tempo necessário, inclusive com a realização de audiência pública.

Entretanto, segundo o advogado Marcelo Buttelli, mestre e doutor em ciências criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e coordenador-adjunto do Departamento de Política Legislativa Penal do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), o PL é "bastante equivocado", inconsistente em termos de argumentação e inconstitucional. Esse, ressalta, é o entendimento do departamento.

O discurso feito por críticos do benefício da saída temporária, como o relator na CSP, de que ele representa atualmente um risco para a sociedade, fala Buttelli, é "genérico" e busca incutir na sociedade "um temor partindo de uma realidade que não condiz com os fatos".

Ele argumenta que o que se tem em termos de dados empíricos sobre a não volta de presos ao sistema carcerário após a saidinha aponta para um percentual pequeno de pessoas frente ao total.

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"Em 2015, um levantamento amplamente divulgado pela imprensa, a média nacional de taxa de evasão é de 4,66%, então de um universo de 100%, apenas quatro não voltam. Dados mais recentes, São Paulo, por exemplo, 2018, dá conta de uma taxa de regresso, não de evasão, superior a 95%. E, no ano passado, nós tivemos um dado do Paraná, também do Departamento Estadual de Política Penitenciária, dando conta de uma taxa de regresso de 96%, ou seja, os presos voltam", detalha.

De acordo com Buttelli, uma argumentação superficial de que a saída temporária tem gerado problemas para execução da pena, de que milhares de presos são liberados, com o benefício, e de que muitos dos contemplados com a saidinha não retornam é "imprestável para autorizar uma supressão de um direito que já está estabelecido há décadas".

Fatos isolados de prática criminosa durante o uso do benefício e que por vezes podem culminar em eventos trágicos, acrescenta, não justificam a supressão desse direito.

"É importante lembrar que o objetivo primário de uma execução de pena no Estado Democrático de Direito é a ressocialização do preso. Em que pese todas as dificuldades, é ainda ressocialização do preso".

Conforme Buttelli, a visão de que o detento deve ser encarcerado e mantido longe de qualquer possibilidade de acesso à sociedade no cumprimento da pena "não condiz com uma política penitenciária democrática", e a saída temporária é um instrumento importante para a ressocialização de presos.

A Lei de Execução Penal prevê a saída temporária desde a sua promulgação, em 1984. Atualmente, tem direito ao benefício detentos que estão no regime semiaberto, tenham cumprido 1/6 da pena se for réu primário ou 1/4 se reincidente, e possuam bom comportamento.

Buttelli relembra que a saída temporária geralmente é pleiteada em eventos como Natal, Ano Novo e Páscoa.

"E ela tem por fundamento legal três hipóteses: a visita à família, a frequência a cursos de educação ou supletivos, ou seja, é uma previsão legal, inclusive, essa questão de saída para realização de cursos, e, finalmente, uma terceira hipótese de concessão são atividades que concorram para o retorno ao convívio social, ou seja, é um instrumento de política criminal fundamental para aliviar a pressão que muitos presos que se encontram no semiaberto recebem, sobretudo de facções criminosas, que o Estado não consegue controlar, em relação a eles".

O retorno dos presos à família e a uma atividade social comum, como o estudo e outras que envolvam pessoas do seu ciclo social, diz o especialista, é essencial para que os detentos não percam a dimensão do que é conviver bem e de forma harmônica em sociedade.

"O que esse projeto faz é obstar, é impedir, é tolher os presos dessa possibilidade, isto é, agrava-se uma situação que já é ruim sobre pretexto de melhorá-la".

Por outro lado, Buttelli pontua que o benefício pode e deve ser aprimorado. Isso a partir de um estudo do impacto efetivamente gerado por ele.

Retrocesso

A vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), a advogada criminal Priscila Pamela dos Santos, também critica o Projeto de Lei. "Eu avalio como um completo retrocesso e como uma vendagem de pauta eleitoreira", declara.

Ela faz a avaliação porque o sistema prisional "é muito mais complexo".

"Ele é integrado por pessoas, por pessoas em diversos situações de vulnerabilidade diferente, e para as quais o sistema não está olhando, para as quais o Estado não está olhando. E o problemático é que essas pautas eleitoreiras e temerárias surgem a partir de um caso concreto, isso no caso foi a morte de um policial para uma pessoa que estava em saída temporária. E aí ela mobiliza todo o Congresso Nacional para aprovação da lei por uma questão casuística".

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Os projetos e as leis não podem ser aprovadas por uma questão pontual e casuística, mas sim por um problema geral, segundo a advogada.

Ela ressalta também que as saídas temporárias são "indispensáveis" para a ressocialização do detento.

"Foi assim que o legislador concebeu e é assim que deve ser. A saída é gradual, ela não é abrupta. Então a pessoa começa ali a usufruir dessas medidas, ela pode por vezes estudar, trabalhar, ela retorna [para a prisão]. São pessoas que estão aptas a isso. E elas acabam retornando para o sistema. Um sistema falido, que o próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu que estava inconstitucional, diante da sistemática imposição de tortura, e ainda assim essas pessoas voltam".

Em outubro do ano passado, o STF declarou haver um "estado de coisas inconstitucional" no sistema carcerário do país. Mesmo com esse cenário, pontua Priscila, os índices de não retorno de detentos contemplados com a saidinha "são ínfimos".

As saídas temporárias, defende a especialista, fazem com que os presos possam ter vínculos afetivos, de amizade, "são importantíssimas para que ele tenha estrutura emocional para sair". "Para que ele mantenha laços fortes para que quando ela saia ele tenha para onde voltar e para que não seja só o crime que esteja esperando de braços abertos".

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Dessa forma, ela chama a proposta de acabar com saidinhas de "temerária", "perigosa" e "eleitoreira". Em vez de discutir isso, fala a advogada, os legisladores deveriam debater, por exemplo, a implementação de políticas públicas voltadas a grupos mais vulnerabilizados e que têm "as portas completamente abertas do sistema prisional".

Ela salienta, porém, que é possível aprimorar o benefício da saída temporária, e isso por meio de investimento em monitoramento e serviço de inteligência.

"Quando se investe em inteligência, você consegue ali entender o funcionamento de como é que a criminalidade está agindo, você consegue ter a tornozeleira eletrônica para todas as pessoas que saem, você consegue saber exatamente onde a pessoa está".

É bastante difícil, diz a especialista, que existam índices muito elevados de não retorno ou de prática de crime pelos detentos em saidinha quando estão sendo acompanhados e monitorados. "Então o investimento em inteligência e no monitoramento dessas pessoas quando da saída é um aprimoramento indiscutível. E aí é uma aprimoramento que traria ali diversos benefícios".

Alteração equivocada

O professor de direito processual penal da Faculdade de Direito da USP Gustavo Badaró, que é mestre e doutor na área pela universidade, também vê a alteração promovida pelo Projeto de Lei no benefício das saídas temporárias como equivocada.

"A execução da pena no Brasil se baseia em uma ideia de progressão do regime mais grave para o menos grave e de uma reinserção gradual do preso na sociedade", argumenta.

"Na medida em que o Estado prevê que a pena deve ter uma finalidade de reinserção social, de reeducação daquele condenado, a finalidade das saídas temporárias, sejam as saídas de Natal, Dia dos Pais, Dia das Mães, Páscoa, sejam as próprias saídas para o exercício de atividades profissionais ou atividades de educação, elas visam a permitir essa reinserção, que o preso comece a ter novamente contato gradual com a sociedade".

Isso com o objetivo de que não haja um "choque" de ele passar todo o tempo preso, às vezes mais de uma década, e quando ele sai tem um primeiro contato com uma sociedade completamente diferente daquela que deixou do lado de fora quando entrou na prisão. "Então, as saídas temporárias têm uma função importante no sistema", acrescenta o professor.

Toda e qualquer saidinha, ressalta, é precedida de uma decisão judicial que analisa o caso concreto do preso. Anda de acordo com o especialista, "se há um número de presos que fogem, cerca de 5%, ou que não retornam, o que se deve fazer é controlar melhor quais são os presos que concretamente têm direito à saída temporária e verificar nesses que não retornam se tem havido algum erro, se havia algum elemento que indicasse que isso podia acontecer".

Ele explica que a própria Lei de Execução Penal prevê, por exemplo, que é possível a saidinha com o monitoramento eletrônico.

O bom comportamento carcerário do detento também pode ser desestimulado se o Projeto de Lei for aprovado.

"Um preso no regime semiaberto ele sabe 'se eu tiver um bom comportamento, se eu não cometer faltas graves, eu posso obter saída temporária'. E se ele pensasse 'tendo bom comportamento ou mal comportamento, cometendo falta grave ou não cometendo falta grave eu não vou sair de nenhum jeito', não há estímulo para o bom comportamento", pontua Badaró.

Outra medida

O PL em tramitação no Congresso também prevê a realização de exame criminológico para a progressão de regime.

Esse ponto também não é visto com bons olhos pelos especialistas.

Marcelo Buttelli fala que há muitos anos esses exames vem sendo criticados, porque fazem um juízo prognóstico sem muita base diagnóstica.

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Ainda de acordo com ele, não há equipes psicossociais no sistema carcerário em número suficiente para fazer frente à quantidade de presos que pretendem progredir. "Então, qual é o impacto prático de uma universalização desse requisito [como a lei prevê]? É mais pressão no sistema carcerário.

Mais presos na fila aguardando pela realização de um exame, que vai ser realizado, não nos enganemos, a toque de caixa, e sem a qualidade devida, muitas vezes vai poder culminar em pedidos negativos de progressão".

Isso impedirá a retomada do convívio social pelo preso e o deixará mais sujeito ao assédio das facções criminosas no âmbito das instituições carcerárias do país.

Os argumentos são corroborados por Priscila Pamela dos Santos e Gustavo Badaró.

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