Especialista esclarece impacto da decisão do CNJ que permite que juízes usem ChatGPT
Mestre em direito digital aponta "falta de conhecimento sobre a tecnologia" em argumentação de advogado que pediu proibição da ferramenta
Jésus Mosquéra
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu, na última semana, que o uso de ChatGPT por magistrados não deve ser proibido. A decisão, por unanimidade, foi em recusa ao pedido de um advogado contrário ao emprego da ferramenta em atos processuais. Esse posicionamento revela "falta de conhecimento sobre a tecnologia", avalia o também advogado Matheus Puppe, mestre e doutorando em direito digital pela Universidade de Frankfurt – Goethe.
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Para Puppe, a decisão do CNJ foi acertada. "A inteligência artificial (IA) é uma ferramenta poderosa que, quando utilizada corretamente, pode trazer inúmeros benefícios, especialmente no contexto do poder Judiciário brasileiro, onde o volume de processos é imenso. A IA pode automatizar, revisar, sistematizar e auxiliar magistrados e colaboradores, aumentando a eficiência e a precisão na análise dos casos", afirma o advogado. Confira a íntegra da entrevista ao final desta reportagem.
Texto sem esforço
A aplicação mais comum para o ChatGPT é a elaboração de textos de maneira robotizada. Basta fazer uma pergunta à ferramenta, em um navegador ou pelo aplicativo, que ela responde. É possível, inclusive, pedir um texto delimitando a quantidade máxima de palavras. Até teses acadêmicas podem ser obtidas. A resposta vem com uma mistura de diferentes ideias e fontes, o que diminui a chance de o usuário enfrentar problemas com direitos autorais.
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Mas o ChatGPT erra. O usuário pode obter informações equivocadas ou desatualizadas. Além disso, se você perguntar ao ChatGPT se ele escreveu determinado texto, a ferramenta confessará a autoria, desde que o conteúdo não tenha sofrido alterações significativas por quem o pesquisou. Desse modo, alunos maliciosos podem até enganar professores, assim como jornalistas preguiçosos podem fazer uma reportagem sem esforço. Mas a mentira tem perna curta.
Como o caso foi para o CNJ
O advogado Fábio de Oliveira Ribeiro tomou como referência esses riscos ao protocolar um pedido no CNJ para que o Conselho proibisse o uso do ChatGPT por magistrados. Ribeiro afirmou que, embora o ChatGPT seja "extremamente sedutor", os magistrados não podem "transferir seu poder/dever de julgar o caso concreto que [lhes] foi submetido, para colher uma avaliação limitada de um programa de inteligência artificial".
Ele sustentou que os brasileiros têm o direito constitucional de terem seus casos julgados "apenas pelas autoridades competentes". Ribeiro argumentou que o Chat GPT teve aprovação nos Estados Unidos por um órgão equivalente à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), mas sem resultados reais satisfatórios em casos debatidos na Suprema Corte norte-americana. O advogado mencionou ainda "testes hipotéticos" nos quais o ChatGPT falhou seriamente em não reconhecer que, no Brasil, existe uma lei específica que classifica genocídio como crime.
CNJ rejeitou a argumentação
O conselheiro do CNJ João Paulo Schoucair relatou o pedido feito pelo advogado. Em fevereiro de 2023, ele rejeitou o pedido de liminar para suspender parcialmente o uso do ChatGPT. Faltava, portanto, o julgamento de mérito, ocorrido nesta semana no plenário do CNJ.
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No voto, Schoucair destacou que há um grupo de trabalho sobre inteligência artificial no Poder Judiciário. Esse grupo tem o objetivo de estudar e apresentar propostas para o bom uso do ChatGPT e outros sistemas de inteligência artificial na Justiça. O relator defendeu o uso responsável dessas ferramentas, para agilizar o cumprimento da rotina. E ressaltou que os usuários devem sempre revisar o conteúdo gerado por IA. O voto foi acompanhado por unanimidade pelos demais conselheiros do CNJ, pondo fim ao debate.
Opinião do especialista
A fim de entender o impacto dessa decisão no cotidiano do Judiciário, o SBT News entrevistou o especialista em direito digital Matheus Puppe. Ele aborda o uso do ChatGPT não só pelos magistrados, mas também pelos advogados. Leia a seguir.
SBT News: Qual a sua opinião sobre o uso do ChatGPT por magistrados para fundamentar decisões?
Puppe: Acredito que o uso do ChatGPT por magistrados é excepcional como uma ferramenta de otimização da escrita, revisão e compilação de informações. Quando usada com conhecimento e cautela, a IA pode melhorar significativamente a qualidade e a velocidade das decisões judiciais. É uma forma de potencializar o trabalho dos magistrados, permitindo que se concentrem em aspectos mais complexos dos casos enquanto a IA cuida de tarefas mais repetitivas e sistemáticas.
SBT News: O que achou do argumento do advogado Fábio de Oliveira Ribeiro de que o uso do ChatGPT comprometeria a "validade e eficácia da norma constitucional que garante aos cidadãos brasileiros o direito de ver seus processos julgados apenas pelas autoridades competentes"?
Puppe: Esse argumento demonstra uma falta de conhecimento sobre a tecnologia em questão. Podemos compará-lo à resistência inicial à adoção de processos eletrônicos ou à escrita de petições à mão, vez que demonstra um medo infundado do progresso. A IA, como ferramenta, auxilia na sistematização de pensamentos e análises realizados por humanos, neste caso, os magistrados. A autoridade competente continua sendo o juiz, que utiliza a IA para suporte, e não como substituto, tão logo não há de se falar em falta de "autoridade competente". No entanto, é crucial que os magistrados sejam devidamente treinados para usar essa tecnologia de forma adequada, garantindo assim a eficácia e validade das decisões judiciais.
SBT News: O uso do ChatGPT pode ser benéfico para advogados na elaboração de peças processuais?
Puppe: Certamente. O ChatGPT pode auxiliar na confecção e compilação de informações, bem como na revisão e melhoria da qualidade dos textos jurídicos, aumentando a velocidade de elaboração das peças processuais. A tecnologia pode ajudar a identificar erros, sugerir melhorias e estruturar argumentos de forma mais eficiente.
SBT News: Quais os cuidados que devem ser tomados por advogados nesse caso?
Puppe: Os advogados devem aprender a usar essas ferramentas corretamente, tratando-as como auxiliares e não substitutos. Isso implica revisar cuidadosamente as sugestões da IA, utilizar prompts de comando específicos e detalhados e nunca delegar integralmente o trabalho à IA sem supervisão (não tem como pedir à IA para fazer enquanto toma-se um café). A IA deve ser usada para auxiliar na redação e estruturação das peças, garantindo que o toque humano e a análise crítica sejam sempre parte do processo.