Alta velocidade, álcool e mortes: o que fazer para reduzir a violência e a impunidade no trânsito
Especialistas apontam saídas para o Brasil deixar de ter um dos trânsitos mais mortíferos do mundo
Um levantamento da Organização Mundial da Saúde coloca o Brasil como o terceiro país do mundo que mais mata em acidentes de trânsito. Um estudo da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego mostrou que 9 a cada 10 são causados por falha humana. Dentre as falhas estão imprudência, ou seja, comportamento negligente do motorista; imperícia, que é a falta de habilidade e conhecimento para dirigir; e a desatenção.
Alguns desses casos chamam a atenção por envolver embriaguez, alta velocidade, disputa de racha e impunidade.
Na noite desta segunda-feira (19), uma mulher de 36 anos teve a perna amputada ao ser atingida por um carro de luxo em Alphaville, na região metropolitana de São Paulo. A polícia investiga se o motorista do veículo disputava racha com outro carro de modelo parecido. Ela estava na garupa de uma moto de aplicativo e o motociclista também ficou ferido.
Outro caso de racha, que segue impune seis anos depois, matou duas mulheres e deixou um homem e um bebê paraplégicos. Duas famílias de amigos voltavam de uma viagem ao litoral paulista quando uma Mercedes atingiu o veículo. Testemunhas contam que o carro disputava uma corrida com um Camaro, que passou pelo local alguns segundos depois.
André Veloso Micheletti, motorista do veículo que causou o acidente, foi embora sem prestar socorro e, apesar de condenado em primeira e segunda instâncias, ainda não pagou as indenizações. O caso foi relembrado pelo UOL no início deste mês, em meio à comoção do país em relação a mais um caso trágico.
No domingo, 31 de março, o empresário Fernando Sastre Filho matou o motorista de aplicativo Ornaldo da Silva Viana ao dirigir um Porsche em alta velocidade. O carro de Ornaldo foi atingido pelo veículo de luxo na avenida Salim Farah Maluf, no Tatuapé, zona leste de São Paulo. A velocidade máxima da via é de 50km/h, mas Fernando chegou a 156 km/h instantes antes da colisão. Ele também mostrava sinais de embriaguez e não fez o teste do bafômetro após o acidente.
A Polícia Militar liberou o empresário quando sua mãe, Daniela Cristina de Medeiros Andrade, o buscou, dizendo que iria levá-lo ao hospital, mas não deu entrada em nenhum. Ele deixou de atender as ligações e só se apresentou na delegacia na segunda-feira, dia 1º de abril, alegando que não havia bebido. Testemunhas e vídeos feitos antes do ocorrido mostram o contrário. Ele foi indiciado por homicídio com dolo eventual, lesão corporal e fuga e aguarda o julgamento em prisão preventiva.
Por que casos como o do Porsche se repetem?
Para o advogado e presidente da Comissão do Direito de Trânsito da OAB-SP, Ademir Rafael dos Santos, existe uma falha no sistema de educação brasileiro, que deveria abordar o assunto desde o ensino fundamental e de uma maneira mais ampla. “Quando se fala de trânsito, e isto está no artigo 1º do Código, é a utilização da via por pessoas, veículos e animais. Hoje, quem tem um treinamento básico sobre trânsito é apenas aquele que conduz um veículo”, diz.
O advogado também vê uma dificuldade na fiscalização. Na opinião do especialista, a fiscalização por agentes de trânsito é mais eficaz para a diminuição dos acidentes do que a digitalização, com radares e câmeras. Para ele, a abordagem desses profissionais é, também, um elemento pedagógico, e a falta dela ou má execução é um dos principais fatores que levam à impunidade dos casos de acidentes com vítimas.
Os casos de embriaguez, por exemplo, seriam detectados. Por mais que o teste do bafômetro não seja obrigatório e o agente de trânsito não possa forçar um cidadão a fazê-lo, um profissional capacitado pode agir de outras formas para constatar sinais de consumo de álcool. Os sintomas de fala desconexa e arrastada, olhos vermelhos, hálito etílico e andar cambaleante podem ser utilizados como prova de embriaguez, de acordo com o advogado.
O médico Alysson Coimbra, integrante da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego e da organização Não Foi Acidente, que busca acolher familiares de vítimas do trânsito, afirma que, além do déficit da educação, faltam políticas públicas voltadas para a saúde mental do motorista. Para ele, os habilitados deveriam passar por uma avaliação psicológica periódica.
Ele ressalta que só uma parte restrita da população brasileira tem acesso ao cuidado de saúde mental, e que, do momento em que tira a carta até a terceira idade, o motorista passa por diversas fases, estando sujeito a transtornos e vícios.
Alysson também é contrário ao aumento da validade da carteira de motorista aprovada em 2021. Para ele, “o aumento da validade da carteira de motorista faz com que essas pessoas sejam afastadas do olhar do especialista”.
A advogada e professora de direito da FGV Luisa Moraes Abreu Ferreira conta que existe uma sensação de impunidade geral, não apenas em casos de trânsito, que se relaciona com o poder aquisitivo dos envolvidos. Ela explica que parte dessa diferenciação está nas condutas tomadas durante o processo e na desigualdade de acesso à justiça.
Luisa explica que, no Brasil, a prisão preventiva deve ser uma exceção, feita apenas quando existem indícios de tentativa de omissão de prova ou fuga. Entretanto, na prática, “não é uma exceção, porque pessoas pobres ficam presas o processo inteiro, porque elas são presas em flagrante”. Ademir dos Santos, da OAB, também vê essa diferença de tratamento de pessoas pobres e pessoas com carros de luxo.
A advogada explica que a sensação de impunidade e a insatisfação com a justiça está ligada também à falta de integração da família da vítima, ou da vítima com sequelas, no processo. Essas pessoas, que muitas vezes não têm o mesmo acesso a advogados, ficam anos esperando uma resposta.
"Ficamos com um foco tão grande na punição do indivíduo que esquecemos as vítimas”. Por isso, ela acredita que uma das saídas para a melhoria do sistema seja a implementação da justiça restaurativa. “Existe uma dificuldade em fazer com que o processo penal seja um processo reparador", afirma. "Valeria muito mais às vítimas uma justiça restaurativa, onde a vítima é ouvida, a família da vítima”. Nesse tipo de processo, nem sempre objetivo é buscar a maior pena para o acusado, mas encontrar maneiras de evitar que o crime se repita e reparar, da melhor maneira, os danos.
*Sob a supervisão de Letícia Sorg e Lucas Cyrino