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"Quando você adoece mentalmente, não serve mais para a PM", diz ex-policial militar

Número de afastamentos por problemas de saúde mental vêm aumentando ano a ano na Polícia Militar de São Paulo; entenda

"Quando você adoece mentalmente, não serve mais para a PM", diz ex-policial militar
Cresce número de suicídios entre policiais no Brasil | Reprodução/Governo de SP
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Alerta: tema sensível

O que parecia uma simples transferência, na verdade, se transformou em um pesadelo na vida da ex-militar Bruna Navas, que hoje tem 33 anos e atentou contra a vida. Tudo começou em um procedimento disciplinar após a participação em um podcast: a comandante do seu batalhão alegou que ela havia falado "mal" do seu trabalho e exposto a corporação. "Na verdade, eu sempre exaltei a PM", disse.

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Segundo Navas, a perseguição dentro da PM começou tímida, mas tempos depois ela foi acusada, sem comprovação até o momento, de ter filmado a venda de roupas dentro de um batalhão – prática não permitida pelas regras da PM – e enviado para um ex-policial militar que era youtuber. Resultado: transferência para um batalhão em São Matheus, no extremo leste da capital paulista.

"Não foi só uma transferência, foi o início de uma perseguição ainda maior. Eles passaram a me tratar mal, olhar estranho, entrei em crise", disse.

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Bruna pensou em tirar a própria vida. "Só não atirei porque um amigo que morava comigo me impediu". Após a situação, seu psiquiatra particular deu a ela um atestado de 90 dias de afastamento, enquanto o atendimento da PM concedeu apenas 18 dias.

Com a primeira tentativa de suicídio, a transferência para São Matheus foi cancelada. Foi, então, enviada para Santos, no litoral Sul de São Paulo, pensando que as coisas iam mudar. Mas não mudaram: a perseguição continuou. Ela pedia para ser afastada e a corporação negava.

Com as negativas e o sentimento de ser uma "decepção para os pais, que são policiais aposentados", o quadro se agravou. Enquanto seu psiquiatra aumentava a prescrição de remédios e o tempo de afastamento do trabalho, era chamada de "louca" pelo psiquiatra da PM.

Desesperada após uma consulta com o médico da PM, ela foi falar com seu então chefe e acabou deixando escapar "você", em vez de "senhor". Resultado: foi presa e chegou a passar uma noite no presídio militar "em surto", sem remédios e, na sequência, recebeu uma condenação do Tribunal de Justiça Militar (TJM).

Formatura de PMs na Zona Norte de São Paulo | Divulgação/SSP
Formatura de PMs na Zona Norte de São Paulo | Divulgação/SSP

PMs são atendidos por oftalmologistas no lugar de psiquiatras

Segundo Marcos Manteiga, da Associação de Direitos Humanos dos Agentes, em muitos casos os PMs nem são atendidos por psiquiatras, mas médicos de outras especialidades, como oftalmologistas e ginecologistas.

"Quando você adoece psicologicamente, não serve mais para a PM, se torna inútil. Palavra da corporação é isso. Você é retirado da rua, o salário abaixa muito, você fica sem sua arma para se proteger e fica com mais medo ainda. Eles te veem como 'mão cansada', que inventa doenças para não trabalhar", disse Bruna.

Afastada da PM há alguns anos, hoje ela é consultora de esporte e disse se sentir muito melhor. "Meu objetivo hoje é ajudar outros policiais que estejam nessa situação. Creio que muitos dos comportamentos dos policiais na rua podem ser reflexos do que acontece lá dentro e que fazem a gente explodir emocionalmente", disse.

Casos de suicídio entre policiais militares e civis vêm aumentando ano a ano e já ultrapassam o número de agentes mortos em confronto: 110 contra 107. É o que mostrou o Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgado no final de julho deste ano.

Apenas na Polícia Militar de São Paulo, foram 43 casos registrados em 2023, uma alta de 30% em relação aos 33 casos de 2022 e quase o dobro (95,5%) das 22 ocorrências de 2015.

Depressão é tratada como "frescura" dentro da PM, diz militar com 15 anos de corporação

"Hoje, a depressão dentro da instituição é frescura. 'Ele não tem nada', 'ele está fingindo'." Disse um policial militar que preferiu não ser identificado e compartilhou sua experiência de 15 anos na corporação.

"Comecei a perder meu sono noturno, perder o apetite e vinham pensamentos constantes de suicídio", contou. Ele precisou ficar quase um ano e meio afastado para tratar a depressão. Quando as queixas do soldado vieram à tona, essa foi a resposta dos policiais.

"Não adianta, esse choro seu não me convence mais. Se você não está contente, pede para sair", disse.

A decisão do ex-policial de pedir para ser afastado reflete uma outra estatística alarmante sobre a saúde mental dos policiais. Dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) com exclusividade pelo SBT News mostram que, em 4 anos, de 2019 a 2023, o número de afastamentos saltou de 1203 para 1667 no estado de São Paulo, um aumento de 38,5%.

O que pode estar por trás do aumento?

Dayse Miranda, socióloga do Instituto de Pesquisa Prevenção e Estudos em Suicídio (IPPES), ressalta que, apesar de o estado de São Paulo ser o único a possuir um programa de saúde mental para policiais – o Sistema de Saúde Mental da Polícia Militar, em que um dos braços é o Programa de Prevenção em Manifestações Suicidas (PPMS) –, falta transparência nos indicadores desses programas.

"Precisamos saber o que está sendo medido nesses programas para fazer o monitoramento de indicadores a que podemos ter acesso e saber em que medida esse trabalho que é feito funciona", explicou.

Segundo a especialista, hoje só são divulgados os feedbacks dos policiais que passaram pelo programa dizendo se gostaram ou não do atendimento, o que, na sua visão, é insuficiente.

PMs sofrem com transtorno de estresse pós-traumático

De acordo com a psiquiatra da USP Alexandrina Meleiro, muitos policiais desenvolvem transtorno de estresse pós-traumático, caracterizado pela dificuldade de se recuperar depois de vivenciar ou testemunhar acontecimentos violentos. Essa condição os deixa muito mais vulneráveis a desenvolver depressão, ansiedade e tentar o suicídio.

Miranda ressalta que a falta de sono, combinada ao manejo de armas de fogo, pode agravar o transtorno no caso dos militares.

Segundo Alexandrina, muitos policiais são obrigados a aparentar força, mesmo quando estão no limite. "Dentro da própria corporação, criou-se uma dinâmica de que todo mundo tem que ser forte. Mas não é assim que se deve lidar com essas dificuldades", diz.

A rotina de um policial militar é marcada por situações de conflito, trabalho excessivo e baixa remuneração, fatores que prejudicam a saúde mental. A especialista destaca ainda que a exposição constante à violência sem apoio psicológico adequado agrava o quadro:

"Lidam direto com agressividade, risco de vida, violência severa. Sem uma válvula de escape, o adoecimento é inevitável", afirma a psiquiatra.

Quais são as perspectivas?

Segundo Dayse, o governo federal está investindo em um projeto chamado Escuta SUSP que visa ao atendimento psicológico online de militares.

Em uma portaria publicada no Diário Oficial da União, no último dia 15 de agosto, o Ministério da Justiça e Segurança Pública regulamenta o projeto, que integra o Programa Nacional de Qualidade de Vida para o Profissional de Segurança Pública (Pró-Vida). Ele prevê que a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) ofereça, em convênio com universidades públicas, assistência psicológica gratuita e especializada a policiais civis e militares, bombeiros, peritos criminais e policiais penais.

Na primeira etapa do projeto, a ideia é oferecer mais de 65 mil sessões de terapia remota durante a primeira etapa, segundo o ministro Ricardo Lewandowski. "Mas isso não é o suficiente, é necessário que cada estado brasileiro entenda o papel da saúde mental na segurança pública", ressalta Dayse.

O Instituto do qual faz parte oferece um curso "Formação de Multiplicadores de Prevenção do Suicídio e Valorização da Vida", em parceria com o Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro, direcionado aos profissionais das áreas administrativa e operacional da Polícia Militar, Corpo de Bombeiros e Polícia Civil, com o objetivo de habilitar o agente de segurança a identificar, abordar e acolher pessoas em sofrimento psíquico

"O modelo que proponho de prevenção é o integral. O que é isso? É um modelo que combina programas de saúde mental com um política que afeta as condições de trabalho, como uma escala mais flexível, e mudanças nas relações interpessoais, que muitas vezes são autoritárias e desrespeitosas", ressalta.

O que diz a Secretaria da Segurança Pública

A Secretaria de Segurança Pública de SP disse, em nota, que "a corporação tem ampliado as iniciativas já existentes de suporte ao bem-estar e atendimento psicológico aos policiais militares da ativa por meio do seu Sistema de Saúde Mental (SISMen), que disponibiliza atendimento psicossocial no Centro de Atenção Psicológica e Social (CAPS), na capital, e também em 41 Núcleos de Atenção Psicossocial em todas as regiões do estado. Além disso, há o serviço de telepsicologia, com atendimento psicoemocional de policiais da ativa ou da reserva com agendamento e consultas online."

Segundo o órgão, a PM oferece suporte psicológico a todos os policiais envolvidos em casos de maior gravidade, como confrontos armados. "Os PMs envolvidos nessas ocorrências passam por avaliação com psicólogos em, no mínimo, dois momentos para o devido monitoramento. O tempo de afastamento é determinado de acordo com cada caso, atendendo às necessidades individuais de cada paciente."

"Somada a essas iniciativas, a SSP realiza periodicamente seminários, palestras e aulas, e disponibiliza cartilhas nas academias que buscam levar aos profissionais informações de caráter preventivo. Especificamente na PM, cartilhas de prevenção são disponibilizadas ao efetivo e estão disponíveis na página do Centro de Atenção Psicológica e Social (CAPS), na intranet da Instituição. Desta forma, o acesso é livre e fácil, podendo ser consultado por todos os policiais a qualquer momento. Além da cartilha, o Sistema de Saúde Mental (SISMen) conta com diversas outras iniciativas voltadas ao acolhimento e orientação dos militares para prevenir e combater suicídios. Essas medidas são continuamente realizadas e aperfeiçoadas pela instituição, a fim de garantir a saúde mental e o bem-estar dos policiais."

Onde procurar ajuda?

CVV (Centro de Valorização à Vida) - Atendimento por ligação gratuita, 24 horas por dia, pelo número 188. Há também as opções de atendimento físico, chat e e-mail.

Pode falar - Canal de atendimento da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) criado para ajudar pessoas de 13 a 24 anos a lidarem com questões de saúde mental.

Além disso, pela rede pública, o atendimento para questões de saúde mental pode começar via atendimento pelas UBSs (Unidade Básica de Saúde) ou pelos Caps (Centros de Atenção Psicossocial) Infanto-Juvenil espalhados pelo Brasil.

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