Luta por demarcação de terras mobiliza milhares de indígenas em Brasília
Acampamento Terra Livre chegou à 20ª edição com demandas políticas em saúde, educação e cobranças ao governo Lula
O passar dos anos não impediu que o ancião Tito Guarani Kaiowá saísse da comunidade Guyraroká, em Mato Grosso do Sul, para levar as demandas do próprio território a Brasília. Com 105 anos, ele é uma das lideranças indígenas mais antigas a participar do Acampamento Terra Livre (ATL), que reuniu milhares de indígenas na capital do Brasil com demandas políticas e para a garantia de direitos das comunidades.
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Ao lado da companheira, Miguela, de 97 anos, seu Tito persiste na luta pela demarcação do próprio território, iniciada na década de 1980. Atualmente com direito a uma parcela reduzida de toda a extensão da área — 55 de 11,4 mil hectares —, ele relata situações de embate com ruralistas e insiste no projeto para retomar o território.
"Na luta desde os anos 1976 para ver se conseguimos recuperar a nossa aldeia original, mas até agora, nenhum [governo] resolveu", diz. Seu Tito também questiona a necessidade de uma nova avaliação para homologar a demarcação da terra indígena, por no passado a área em Caarapó ter sido analisada por equipes técnicas: "Estava tudo no relatório avaliado por Gilmar Mendes [ministro do STF], mas ele falou que não era aldeia, e aí começou a luta de hoje em dia".
A decisão a que o ancião Kaiowá se refere foi a proferida pelo ministro em 2014, com base na tese do marco temporal — que atualmente se encontra suspensa por decisão do próprio ministro. Em 2018, os indígenas da comunidade entraram com uma ação rescisória. A ação foi admitida pela Corte, mas ainda não foi julgada.
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A importância do direito à própria terra é destacada pela cacique Ivanice Pires Tanoné, da comunidade Kariri Xocó. Uma das poucas lideranças femininas indígenas no Brasil, ela conta estar na etapa final da regularização da Terra Indígena do Bananal, no perímetro urbano de Brasília, onde vive com quase 2 mil pessoas. Aos 70 anos, a cacique celebra a conquista.
"Foi uma luta muito grande, muito difícil. Mas eu consegui como mulher, sem marido, com meus filhos pequenos. Eu consegui dar um pulo", conta. "Plantar macaxeira, batata, tudo o que a gente come. Feijão angu, feijão de corda. E agora no inverno, a gente colheu muito milho. É isso que a gente quer. Viver em um local em paz, feliz, com a barriga cheia, sem fazer mal a ninguém e nem trazer baderna para a aldeia", aponta, em outro momento.
Apesar da conquista da comunidade Kariri Xocó, o processo de demarcação ainda se coloca como um desafio para centenas de terras no Brasil. Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), 32% dos 676 territórios ainda não foram sequer homologados — etapa necessária antes do processo de demarcação. O desafio também é exposto por Alcebias Sapará, vice-coordenador da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
"Processo de demarcação não é fácil. Só na Amazônia temos mais de 800 processos parados, e essa briga a gente prevê, com mais de 50 anos a gente ter uma expectativa de demarcar ao menos uma parte, mas o momento agora é de enfrentamento", declara o indígena da TI Raposa Serra do Sol, em Roraima.
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Outras reivindicações
Em paralelo à demarcação de terras, a principal demanda do ATL, os 8 mil indígenas que estiveram em Brasília na última semana também levantaram a necessidade de mais atenção à saúde, educação e segurança em comunidades. Jeremias Wai Wai, 38, um dos coordenadores da região em Roraima, relata dificuldades enfrentadas pela invasão de garimpeiros.
"Nossa terra foi demarcada, mas agora o problema é na invasão de garimpeiros", aponta. O problema citado foi destaque em estudo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), divulgado na sexta-feira (26). O monitoramento aponta que ocupações feitas por garimpos em terras indígenas tiveram aumento de 361% entre os anos de 2016 e 2022.
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Em outra frente, Wai Wai também destaca a necessidade de mais atenção à saúde em aldeias. "Algumas comunidades não estão tendo visita de médicos e profissionais. Falta atendimento, enquanto outras estão sendo atendidas", aponta.
Os pontos, que somam um total de 25 reivindicações, foram direcionados em uma Carta dos Povos Indígenas do Brasil aos Três Poderes. Um pedido para mais agilidade na demarcação de terras também foi levado em encontro de lideranças com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na última quinta-feira (25).
O chefe do Executivo pediu mais tempo para tratar a questão das demarcações de terras, mas se comprometeu a montar uma força-tarefa para apresentar alternativa para viabilizar retirada de invasores dos locais.
Na previsão, está a homologação de quatro Terras Indígenas em Santa Catarina, Paraíba e Alagoas. A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, apontou a necessidade de aguardar mais tempo e destacou que o processo depende de conversa com governadores.
"Não se pode assinar as homologações desconsiderando toda a ocupação não indígena que há dentro desses territórios. O governo tem que oferecer as condições para que essas pessoas saiam e sejam logo assentadas. Um diálogo com os governadores foi sugerido para que possam conjuntamente resolver essa questão social. Não se pode resolver um problema histórico criando outro. Tem que haver uma articulação entre órgãos responsáveis", afirma.
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Outro lado
O SBT News entrou em contato com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) para mais informações relacionadas ao processo de demarcação das terras citadas, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
Por meio de nota, o Ministério dos Povos Indígenas disse que houve uma forte retomada de homologação de terras indígenas desde 2023, com dez processos desde a criação da pasta: "Praticamente o mesmo número (11) que foram realizadas em 10 anos das gestões anteriores".
O ministério também disse ter compromisso com a questão indígena e que as etapas precisam atender ritos processuais entre Funai, Ministério da Justiça, Casa Civil e a própria presidência da República.
A pasta ainda citou decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de suspender processos que discutem a constitucionalidade do marco temporal. "A suspensão dos processos vale até que o STF decida sobre a legalidade da norma. O MPI seguirá dando continuidade à implementação dos direitos indígenas", completou.