Ex-funcionário de hotel em Alphaville (SP) denuncia racismo: "Corta esse cabelo, tá parecendo pelo de cachorro"
Fernando foi chamado de “ridículo” e proibido de usar banheiro da área de eventos por causa do cabelo

Flavia Travassos
Natalia Vieira
Fernando Lancelot trabalhava como produtor de eventos em um hotel em Alphaville, endereço de alto padrão na região metropolitana de São Paulo, quando sofreu um episódio de racismo. "Ela falou: 'Corta esse cabelo, tá ridículo, tá parecendo pelo de cachorro, tá feio'", relembra Fernando, que na época usava o cabelo solto. Hoje, ele mantém os fios em tranças.
Segundo Fernando, ele não foi o único funcionário a sofrer discriminação no local. "Soube pelas meninas que as que estavam com cabelo cacheado tinham que prender o cabelo, e as que tinham cabelo liso não precisavam prender. Era só quem tinha cabelo cacheado", relata.
Um ex-colega, que prefere não se identificar, também testemunhou outro episódio de racismo envolvendo Fernando. "Ele não podia usar o banheiro da área de eventos. Só podia usar o banheiro que ficava internamente, então teria que dar uma volta muito grande pra poder usar o banheiro, só porque ela não queria. Os outros funcionários não tinham essa restrição, só ele", contou a testemunha.
Depois de 10 meses, Fernando foi demitido. Sem entender claramente o motivo, decidiu gravar uma conversa com a responsável pelo local.
"O fato é que aqui dentro o senhor deve entrar com o cabelo preso, só isso. O seu cabelo é problema seu lá fora, aqui dentro é só o respeito com o cliente. Eu pedi gentilmente que você prendesse o cabelo, isso é um direito. Que parecia pelo de cachorro, eu não falaria... Que tá ridículo, eu devo ter falado isso pra ele sim", afirma a funcionária na gravação.
A mesma testemunha que presenciou o episódio de racismo reforça que o problema não estava no desempenho profissional de Fernando. "Me chamaram para conversar e falaram: 'Não é nada do serviço dele'. Tanto que os clientes elogiavam muito o serviço dele. É que ela falou que ele não tinha postura por causa do cabelo."
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O caso foi registrado como injúria racial na delegacia de Barueri, em São Paulo. A pena para esse tipo de crime varia de dois a cinco anos de prisão. Segundo a Comissão de Igualdade Racial da OAB de São Paulo, o que importa não é a intenção, mas como a vítima se sentiu.
"A pessoa pode alegar que não teve intenção, que não é racista, que não quis discriminar. Mas é como a pessoa se sente no seu íntimo, como repercute para si mesma ver sua imagem afetada diante de uma ofensa discriminatória", explica Rosana Rufino, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP. "A exigência de corte de cabelo ou de prender o cabelo, sem justificativa técnica que seja essencial às funções exercidas, é considerada conduta abusiva e discriminatória", reforça.
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O problema enfrentado por Fernando faz parte de uma realidade maior. Nos primeiros três meses deste ano, mais de 2.057 novos processos sobre racismo foram abertos na Justiça brasileira, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
No caso de Fernando, o advogado Renato Francisco Sanches entrou com uma ação trabalhista. "Queremos responsabilizar tanto a empresa quanto a pessoa que cometeu o crime de injúria racial. A empresa, para que tenha mais cautela com seus funcionários e promova um ambiente saudável e respeitoso, e a pessoa, para que nunca mais cometa algo dessa natureza", explica.
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A equipe de reportagem tentou ouvir a responsável pelo hotel, mas foi informada de que ela não estava no local. Por telefone, ela disse que não queria gravar entrevista. Em nota, o estabelecimento afirmou que "valoriza a diversidade étnica e repudia episódios de racismo, constrangimento ou outra forma de discriminação".
A audiência sobre o caso ainda não foi marcada.