Na contramão do Ministério Público, relator defende PEC que permite trabalhar a partir dos 14 anos
Proposta de Emenda à Constituição chegou a entrar na pauta dos dias 18 e 19 de junho da CCJ da Câmara; Conselhos Nacionais também se manifestaram contra o texto
A pauta das reuniões de 18 e 19 de junho da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados incluía uma matéria polêmica: uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que permite que adolescentes trabalhem a partir dos 14 anos. O texto, em tramitação na Casa desde 2011 e que pode ser discutido na CCJ na próxima semana, é defendido pelo relator, deputado Gilson Marques (Novo-SC), mas criticado por conselhos nacionais, como o dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), além da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT) e o Ministério Público do Trabalho (MPT).
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Gilson Marques apresentou parecer favorável à PEC no final de maio. Atualmente, a Constituição Federal diz que um dos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais é a "proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 e de qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos". É nesse trecho, introduzido na Carta Magna pela Emenda Constitucional nº 20/1998, que a PEC, de autoria do deputado Dilceu Sperafico (PP-PR), pretende mexer.
Ela muda a redação da Constituição para dizer que um dos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais é a "proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 e de qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz ou sob o regime de tempo parcial, a partir de 14 anos".
Em entrevista ao SBT News nesta semana, ao ser questionado sobre por que fazer uma redução na idade mínima para que adolescentes possam trabalhar e se atuar na forma de jovem aprendiz a partir de 14 anos não é suficiente, o relator na CCJ da Câmara disse que para responder à pergunta é preciso "entender de quem é a responsabilidade" de tomar a decisão sobre se os adolescentes de 14 e 15 anos podem trabalhar. "Certamente, nem eu, nem você, nem qualquer político vai saber tomar essa decisão para 5.500 municípios, para todas as famílias".
O deputado relembrou que antes da Emenda Constitucional nº 20/1998, a Carta Magna permitia o trabalho de adolescentes de 14 e 15 anos e que, com a Emenda permitindo apenas na condição de jovem aprendiz, "a gente trocou a escolha dos jovens e dos pais pela escolha dos políticos, que precisa ser obedecida para todo o Brasil, para todas as famílias".
"Não existe virtude nenhuma na decisão certa em avaliar o que é melhor para o jovem se os políticos decidem pelas famílias".
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Gilson Marques ressaltou que a PEC não obriga jovens a trabalhar, mas sim permite permite a eles trabalharem, "dá um direito que hoje não existe. Hoje é uma obrigação de não fazer, é uma obrigação de não poder fazer caso queira, caso o pai queira".
O Jovem Aprendiz, em suas palavras, "é um programa que tem outras especificidades e não consegue abranger o Brasil inteiro e que não tem adesão suficiente num mínimo de jovens que possa adentrar nesse programa, apesar de ser muito bom".
Com a PEC, afirmou o deputado, está tentando "aumentar o número de possibilidade de jovens, caso queiram, ter acesso ao mercado de trabalho, fazendo um meio termo entre a Constituição de 88, que permitia de forma abrangente, e a Emenda nº 20/98 que passou a proibir de qualquer forma".
Segundo ele, a alteração "permite mediante vários critérios, inclusive não pode ser em período integral, somente em período parcial certo".
Críticas
Em nota técnica divulgada na semana passada, o Ministério Público do Trabalho (MPT) disse que a PEC "padece de inconvencionalidades e inconstitucionalidades, não podendo ser admitida, de modo a resguardar direitos humanos e fundamentais de crianças e adolescentes".
Segundo o órgão, "reduzir a idade mínima para o trabalho viola os direitos de crianças e adolescentes e representa um retrocesso social, incompatível com a proteção integral, a prioridade absoluta e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil". Entre esses compromissos, a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Desenvolvimento Sustentável.
O MPT diz que "o direito ao não trabalho de crianças e adolescentes consubstancia direito humano, social e fundamental, sobre o qual, consequentemente, incide a proibição ao retrocesso social". A nota técnica salienta também que o trecho da Constituição em que a PEC pretende mexer garante "o direito fundamental de crianças e adolescentes ao não trabalho" e que a previsão foi resultado de necessária adequação do texto constitucional a normas jurídicas internacionais cujo cumprimento o Brasil se comprometeu.
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Conforme o MPT, "o trabalho infantil priva crianças e adolescentes de infâncias e adolescências plenas, retirando-as da escola, afetando seu aproveitamento escolar e violando direitos fundamentais, em especial daquelas em situação de maior vulnerabilidade socioeconômica e risco social, que são induzidas ao trabalho". Ao final da nota, o órgão opina pela inadmissibilidade e integral rejeição da PEC.
A Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho divulgou nota técnica sobre o texto na segunda-feira (24). A entidade também aponta "inconstitucionalidade e inconvencionalidade" da PEC. Segundo a ANPT, "a previsão constitucional da vedação ao trabalho na idade mínima consiste em um direito social e fundamental, indissociável da proteção integral com prioridade absoluta de crianças e adolescentes e do princípio fundamental da República Federativa do Brasil de garantia da dignidade da pessoa humana".
Em nota técnica sobre a PEC, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente manifestou preocupação e contrariedade ao texto. Segundo o Conanda, a limitação da idade mínima para o trabalho contida no trecho que a proposta pretende mexer "traduz um direito social e, como tal, um direito humano fundamental que tem por objetivo a satisfação de um dos Princípios norteadores da Carta Magna, qual seja, a dignidade da pessoa humana".
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O Conselho acrescenta que esse direito está protegido pela "cláusula da vedação do retrocesso social, tendo em vista que os direitos fundamentais, uma vez reconhecidos, não podem ser abandonados nem diminuídos". Além disso, diz, a redução da idade mínima para trabalhar afronta diretamente o disposto no parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição, segundo o qual "não será objeto de deliberação a PEC tendente a abolir, dentre outros, os direitos e garantias individuais".
O Conanda destaca que "o trabalho infantil gera diversas consequências negativas e irreversíveis para a saúde e a segurança das crianças e adolescentes envolvidos, bem como sobre seu desenvolvimento físico, intelectual, social, psicológico e moral".
Relator rebate
Gilson Marques disse que viu os posicionamentos do Conanda e MPT contra a PEC e discorda. "Falar que essa norma agora, essa alteração constitucional, é inconstitucional é o mesmo que falar que a Constituição é inconstitucional, porque a própria Constituição de 88 previa o trabalho de jovens de 14 e 15 anos", pontua.
"Inclusive poderia ser, naquela época, em período integral. Então não faz sentido você dizer que a Constituição é inconstitucional. Com relação a esse argumento, felizmente, não tem como vingar".
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Questionado se, ao reduzir a 14 anos a idade mínima para trabalhar, não há risco de diminuir a participação de adolescentes nas escolas, o relator afirmou que a PEC autoriza o trabalho apenas "em regime parcial, no máximo 25 horas semanais". "Isso por que? Para privilegiar a escola. Então o jovem precisa ir estudar e, no contraturno, ele se quiser vai trabalhar, é um direito, sem deixar a escola logicamente em primeiro lugar".
Segundo Gilson, mesmo que concorde com um eventual argumento de que no contraturno é melhor estudar, "não existe ensino público no contraturno no Brasil". Para o deputado, a PEC "não compromete em nada o estudo porque, no período em que o jovem precisa estudar, ele tem que continuar estudando, isso é um dos requisitos que a própria norma deixa claro".
Tramitação
Questionado se acredita que a PEC terá o apoio da maioria da dos membros da CCJ, o relator disse ser "difícil" dizer. "O projeto é bastante polêmico, ele é mal interpretado", argumentou.
De acordo com o deputado, a partir do momento que se explica com calma e de forma lógica o texto, a resistência a ele "vai diminuindo". "Então eu tenho expectativa, sim, de que com o tempo a maioria dos políticos compreendam essa matéria, até porque grande parte da adesão popular também é favorável à matéria", acrescentou.
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Segundo Gilson, não houve nenhuma conversa sobre colocar a PEC na pauta da semana passada da CCJ nem de retirar. "O problema é que os trabalhos na Câmara, na verdade, são insanos, é humanamente impossível você vencer a pauta toda num dia de comissão", pontuou.
"Por exemplo, tem 40 itens na pauta, muitas das vezes a gente analisa dois, três, às vezes dez, então simplesmente não foi analisado, não adentrou na pauta porque não houve tempo hábil para isso".
Ele relembrou que, para esta semana, foi estipulado que Senado e Câmara só votariam pautas de consenso, pois foi autorizada votação à distância, considerando que, tradicionalmente, congressistas nordestinos voltam para suas bases para participar das festividades de São João.
"Talvez semana que vem essa pauta seja deliberada. De novo, depende da sequência da pauta dos trabalhos, às vezes é pedido inversão de pauta, em que se consegue trazer um item como prioritário".
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Gilson diz que mais cedo ou mais tarde a CCJ deverá deliberar sobre a PEC, porque não deve ser retirada definitivamente da pauta.
"Eu, honestamente, acharia isso vergonhoso, pois é uma PEC que está desde 2011 hibernando na Câmara. A partir do momento que você não delibera uma proposta há tanto tempo, onde existe uma demanda da sociedade e isso é um dilema, na verdade é uma omissão de um cargo público que eu não gostaria de participar".
Se for aprovada na CCJ, a PEC ainda precisará ser analisada por uma comissão especial antes de ir ao plenário da Casa. A reportagem perguntou ao deputado ainda se vê risco de a proposta ser judicializada, considerando que há uma polêmica em torno dela. "Esse risco sempre existe, infelizmente já se tornou uma praxe, independentemente de qual lado ou de quem tem razão, quando se perde no Congresso a tendência é judicializar", respondeu.