Bebê Rena: Homens também são vítimas de violência sexual – mas quase não falam sobre o assunto
Apesar de casos serem menos frequentes do que contra mulheres, muitas vezes eles não são identificados pelas vítimas. Entenda
Alerta: tema sensível
A violência sexual contra homens é uma realidade pouco falada, mas nem por isso deixa de acontecer no Brasil e no mundo. Muitos até se perguntam: eles também podem ser vítimas desse tipo de abuso? Com a estreia da série Bebê Rena, na Netflix, o tema começou a circular pelas redes sociais. Na obra, o personagem Donny, inspirado na vida do próprio autor e protagonista da série, Richard Gadd, é perseguido e abusado sexualmente por um homem e uma mulher.
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Apesar de estatisticamente o número ser bem menor na comparação com as mulheres – 1,8 milhão de meninos e homens e 7,6 milhões de meninas e mulheres, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) –, as vítimas do sexo masculino falam muito menos sobre o assunto. Enquanto 46% das meninas e mulheres denunciam as agressões, apenas 9% deles levam o caso para frente.
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Muitas vezes meninos e homens só se dão conta de que foram abusados sexualmente cerca de 20 anos depois e "apagam" o que aconteceu pelo trauma da situação vivida. É o que explica o psicólogo Denis Gonçalves Ferreira, fundador da ONG Memórias Masculinas, dedicada ao atendimento psicológico presencial e online de homens que foram vítimas de abuso sexual. Ele ressalta que, em geral, os homens sofrem violência mais cedo do que as meninas e, também, por mais tempo, já que há uma forte subnotificação dos casos.
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"É comum que os homens nos procurem com 30, 40 anos e digam assim: eu não lembrava que isso tinha acontecido. Muitos deles se lembram vendo uma série, participando de uma roda de conversa ou porque alguém falou na faculdade. É como se você tivesse se protegendo para não entrar em contato com uma situação que é absolutamente dramática", ressalta.
Abuso vai além do ato sexual
Segundo Ferreira, outros dois pontos dificultam o caminho para os homens denunciarem casos de abuso sexual: ter clareza sobre o que é violência sexual e não querer se mostrar fraco pelo machismo estrutural da sociedade.
Um levantamento feito pela ONG de Ferreira, realizado com 1,2 mil homens, mostrou que 70% deles sofreram violências sexuais sem contato corporal antes dos 11 anos de idade. Ou seja, exposição a conversas sexuais e pornografia, por exemplo. Enquanto isso, 30% deles relataram terem sido submetidos a sexo forçado, ou seja, a atos violentos com penetração.
"Um menino de 10 anos, por exemplo, receber do seu pai informações sobre sua vida sexual, com detalhes explícitos, já é uma forma de violência sexual. É como se tivessem sido 'queimadas' várias etapas do desenvolvimento psicossexual dele", explica.
Apesar de a maioria dos casos não pressupor uma violação direta do corpo, as consequências psíquicas são parecidas: insegurança sexual e emocional. O estupro, porém, pode trazer complicações ainda maiores, porque, segundo Denis, a vítima pode sentir prazer pelo ato sexual e achar que é culpada por ter sido violada. "Desfazer isso da cabeça da pessoa é um trabalho terapêutico grande", afirma.
"Nós vivemos em uma sociedade que é estruturalmente machista, em que homem está no centro e deve ser forte e viril. Quando ele sofre a violência, é como se a situação o deixasse com medo de se mostrar vulnerável, além de o fazer achar ser 'menos homem' nos moldes apresentados pelo machismo", ressalta.
Como acontece e quem são os agressores sexuais?
*Alerta de spoiler: a partir daqui você pode saber mais da trama de Bebê Rena
Bebê Rena traz duas situações incomuns de abuso sexual: uma mulher que abusa sexualmente do protagonista, que também é estuprado por um homem adulto. Em geral, segundo eles, a maior parte dos agressores de homens também são homens, mas a maior parte das vítimas são crianças. Apesar de não representarem a maioria, as vítimas adultas representam 5% dos casos de violência sexual, segundo o levantamento realizado por Ferreira e sua equipe.
De acordo com o especialista, o ponto de partida da violência sempre é uma relação de poder implícita. No caso da série, poder físico, emocional e quando se ocupa uma posição mais elevada na hierarquia do trabalho.
"Na série, por exemplo, quando a personagem coloca a mão dentro da calça dele, ele fica paralisado. Além de ter uma força física maior, ela minou tanto psicologicamente o personagem com mensagens e perseguição, que ele se coloca em uma situação de vulnerabilidade. Além disso, em várias outras situações, ele é estuprado por um homem que está em uma situação de poder no trabalho", explica.
No entanto, o mais comum, segundo Ferreira, é que o agressor seja da família. "Não são monstros, ao contrário do que muitos pensam", diz.
"São os nossos pais, nossos tios, nossos avós. Embora sejam pessoas trabalhadoras, com relacionamentos estáveis e boas na maior parte do tempo, também são criminosos".
Mudanças de comportamento entre as crianças vítimas de violência sexual
Diante do fato de que as violências sexuais são mais comuns do que pensamos, o especialista recomenda aos pais e responsáveis que tenham atenção aos seguintes sinais:
- Mudança abrupta no desempenho escolar. Ou seja, a criança passa a ter dificuldades de aprendizado, mesmo que isso que nunca tenha acontecido;
- Voltar a fazer xixi na cama após ter abandonado o hábito;
- Aumento da agressividade.
"Do nada, a nota da criança era boa e ficou ruim, o que está acontecendo? A criança está tendo que administrar uma situação tão dramática que, obviamente, está sem capacidade de aprender naquele momento", alerta.
Como os homens podem falar mais sobre o assunto?
Ferreira dá dois caminhos: o tema ser mais abordado pela mídia, para que os homens se encorajem a denunciar, e ampliar o acesso à educação sexual.
"Quando falo de educação sexual, não é de ensinar a fazer sexo: isso seria uma forma de violação sexual. O que falo é construir habilidades protetivas nas crianças, melhorar a confiança em relação a si mesma e aos outros", explica.
Dessa forma, o individuo lidaria melhor com situações de violência sexual, já que aceitaria mais seu próprio corpo e desejo. Denis ressalta que a série Bebê Rena, como traz dois casos incomuns de violência sexual, ajuda a alertar que os homens também podem ser vítimas e precisam falar sobre isso.
"A gente precisar criar uma sociedade, uma linguagem, uma cultura para ficar muito claro que a violência sexual é responsabilidade dos agressores, e não das vítimas. Porque o quanto mais culpada uma pessoa se sente, menos condições ela tem de falar sobre aquilo".