Rubens Barbosa: planos de Lula e Bolsonaro não respondem aos desafios globais
Ao SBT News, embaixador avaliou propostas para política externa dos dois principais candidatos à Presidência
Giovanna Colossi
Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e ex-embaixador do Brasil em Washington e Londres, o diplomata Rubens Barbosa diz que os planos de governo de Lula e Bolsonaro para a política externa "são muito generalistas" e "não respondem aos desafios do mundo moderno". Em entrevista ao Mapa Mundi, programa semanal do SBT News de geopolítica, Barbosa também aponta para o fato da política externa estar nas páginas finais do programa de governo dos dois principais candidatos, o que para ele já era esperado, mas alerta para a importância do tema para que o futuro governo avance nas questões internas e recupere seu prestígio e credibilidade no exterior.
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"A leitura do programa de governo do Lula e do Bolsonaro na área de política externa está no final. No programa do Lula, política externa está no parágrafo 100 e no do Bolsonaro está na página 45 (o plano de governo tem 48 páginas), e tanto o programa do Bolsonaro quanto o programa do Lula são muito generalistas. Eles não entram nas coisas mais importantes e, sobretudo, eu acho que nenhum nem outro programa responde aos desafios do mundo moderno, desse mundo em grande transformação, no meio de uma guerra. Considerar a política externa uma coisa menos importante é muito grave no momento em que nós estamos vivendo."
O ex-embaixador também ressalta a necessidade de mudar a atual política ambiental, que continuará sendo uma questão chave, para que o Brasil volte a ter projeção e relevância externa e avalia que a guerra na Ucrânia, o atual conflito entre China e Estados Unidos, colocam o Brasil, grande produtor agrícola, em uma posição central que o país nunca esteve em 200 anos de independência. Ele também critica a falta de interesse do Brasil na América do Sul e na África nos últimos anos e acredita que devemos recuperar essa posição de liderança regional. Na opinião de Barbosa, o Brasil está perdendo "muitas oportunidades na área agrícola e na área industrial" ao ignorar ambos.
Venezuela, o posicionamento do Brasil na guerra da Ucrânia e o fortalecimento do multilateralismo também foram alguns dos tópicos abordados. Leia a íntegra da entrevista. Veja em vídeo no fim do texto.
Com essa vasta experiência que o senhor adquiriu ao longo dos anos, que pontos o senhor indicaria como essenciais para uma política externa de sucesso em relação aos Estados Unidos e Europa?
Eu acho que a política externa que seria importante para o novo governo teria que reconhecer, em primeiro lugar, as debilidades que o Brasil está enfrentando tanto internamente quanto externamente. Você não pode começar a política externa no novo governo sem definir o lugar do Brasil no mundo. O mundo está gradualmente se dividindo em dois grandes grupos em uma nova Guerra Fria estimulada pelos Estados Unidos. Onde é que o Brasil vai ficar? Qual é o lugar do Brasil nisso? Segundo, o Brasil, na política externa do novo governo não vai poder ignorar a questão do meio ambiente e mudança de clima.
No centro da política externa nova, a partir de Janeiro de 2023, deveria estar o meio ambiente, como está nos Estados Unidos, como está na Europa, e quando eu falo meio ambiente e mudança de clima, é a política ambiental do governo brasileiro que eu estou me referindo. Esse tema virou global, e o foco do mundo em relação ao meio ambiente, em relação ao Brasil, é a Amazônia. Se não tiver uma mudança em relação à política ambiental e a política amazônica, nós vamos continuar do jeito que a gente está em termos de projeção externa.
Um terceiro aspecto é a questão da América do Sul. O governo brasileiro, nestes últimos anos, praticamente ignorou a América do Sul. Se você olhar para os BRICS, todos os países, com exceção do Brasil, são líderes regionais. O Brasil tem que recuperar essa posição de liderança regional. Ou seja, tem toda uma agenda que não é só de política externa, mas que a política externa deve levar a diante. Eu acho que a política externa vai ser um fator, dependendo de como ela for formulada, vai ser um fator muito importante -- se não o mais importante -- para a recuperação da credibilidade brasileira. Para recuperação da percepção externa hoje muito negativa em relação ao Brasil.
Então o senhor reforça que houve uma perda de credibilidade em relação à política externa?
Basta ver a posição que o Brasil está. O Brasil era um protagonista nas discussões de meio ambiente, mudança do clima. Nós fomos totalmente afastados. Na questão das negociações comerciais, o Brasil não tem uma voz muito forte. Mesmo na ONU, nós perdemos uma voz mais forte lá e a relação com os países europeus está muito deteriorada. Quer dizer, nós chegamos a ter um ministro do Exterior que estava de acordo que o Brasil fosse considerado um pária.
O senhor mencionou o nosso relacionamento deteriorado com a Europa. A minha pergunta é, o Brasil de fato perdeu (economicamente) com essa relação ruim com a Europa? E, no tempo do presidente Lula, nós de fato ganhamos com esse relacionamento amistoso?
Em termos de política externa, você não pode olhar para trás. Por quê? Porque você teve uma guerra, e agora está tendo uma ameaça em Taiwan. O mundo se transformou brutalmente nesses últimos 20 anos. A globalização, a tecnologia, os acordos comerciais, a questão do meio ambiente, esses elementos -- sobretudo a emergência da China -- mudaram o papel dos países no mundo. O Brasil não é um país pequeno, o Brasil é um país continental, de grande extensão territorial, de grande população, o Brasil é o quarto país do mundo em termos de produção agrícola e hoje isso é muito importante. Está sendo anunciado um aumento da população global, a questão da fome, a questão da área dos alimentos, é central. Pela primeira vez na história, o Brasil está no centro de algum acontecimento que é central para a humanidade, e não teve -- se você olhar em 200 anos no Brasil independente -- nenhum momento em que o Brasil ocupa uma posição central. Hoje o Brasil ocupa uma posição central na questão ambiental por causa da Amazônia. Então não adianta você olhar para trás, tudo mudou.
Me permita reformular a pergunta então. Esse relacionamento ruim com a Europa é muito ruim para nós? Nós perdemos com isso? O que perdemos?
Perdemos muito. Eu vou dar um exemplo concreto: por causa da mudança da política ambiental e por causa de alterações na governança de um acordo Internacional na área do meio ambiente entre o Brasil, a Noruega, e Alemanha, que era o Fundo Amazônico, nós estamos perdendo U$ 3 bilhões. Basta o presidente, no dia 1º de janeiro, mudar isso, que você tem U$ 3 bilhões de dólares que entram imediatamente. Nós temos uma ligação com a Europa muito importante, tem acordos comerciais, exportação, investimentos. As empresas europeias estão investindo no Brasil. E o que foi feito para ampliar isso nesses últimos anos? Muita pouca coisa. Nós hoje estamos numa situação muito difícil, por isso que eu disse logo no começo, o futuro presidente vai ter que definir o lugar do Brasil no mundo, porque, apesar do Brasil ser um país ocidental -- em termos de valores, democracia, liberdade, costume --, na prática, o Brasil está dependendo da Ásia.
Hoje, o Brasil está mais dependente da Ásia do que da Europa e dos Estados Unidos. O que é importante hoje para o Brasil em termos de investimento, em termos de relação política, em relação diplomática, em termos de comércio exterior? É muito mais importante a Ásia do que a Europa. A nossa relação comercial com Singapura, com Vietnã, com a Tailândia, com a China, é muito maior do que com a França, com a Inglaterra, com a Itália, e com outros países europeus, como Portugal e Espanha. Então os laços políticos, econômicos, culturais com a Europa vão ser preservados -- e devem ser ampliados --, mas o interesse concreto nosso hoje está voltado para a Ásia.
O senhor disse que estamos diante de uma nova guerra fria e que o Brasil precisa encontrar o seu lugar no mundo. Há espaço para uma reedição do movimento não alinhado ( Associação livre de países que, durante a guerra fria, não tinham nenhum compromisso formal com Estados Unidos e União Soviética) capitaneado pelo Brasil a lá Azeredo da Silveira ( chanceler de Ernesto Geisel que aproximou o Brasil do mundo árabe e chegou a estabelecer relações diplomáticas com a China comunista em plena ditadura militar)? Teremos de tomar o lado da economia ou o lado dos valores e da cultura?
Eu acho que essa é uma outra outra hipótese que está longe ainda porque nós vamos ter que ver como vai ser a política externa. Quando eu digo que a gente tem que definir o lugar do Brasil no mundo, eu acho que o Brasil não pode se alinhar automaticamente a ninguém. A política que o Brasil deveria seguir para defender os seus interesses é uma posição de equidistância em relação a essa questão geopolítica mais global. A guerra, esses atritos entre os Estados Unidos, Europa, Otan, e a China e a Rússia, isso é problema deles, não é problema nosso. O problema nosso é o crescimento, o desenvolvimento, a pobreza aqui, aumentar nossas relações comerciais. Isso que é o problema do Brasil. Eu acho que essa é a posição razoável hoje. Não é uma posição nem político partidária nem ideológica e nem geopolítica, é uma atitude de defesa dos interesses nacionais.
Tanto no plano de governo do Lula quanto do Bolsonaro, eles mencionam o fortalecimento do multilateralismo. O plano do Bolsonaro também enfatiza a necessidade de fortalecer a segurança energética e coloca como exemplo a guerra na Ucrânia. A guerra na Ucrânia e suas consequências levaram a questão da segurança energética a ser uma das principais preocupações do nosso país e do mundo? E em relação ao multilateralismo, podemos esperar, independente de quem ganhe essa eleição, uma maior participação brasileira na OCDE, Brics, G20, Mercosul?
Eu acho que o Brasil não tem alternativa. O multilateralismo é muito importante tanto na questão da paz e da segurança nas Nações Unidas quanto na questão comercial na OMC, como em todos os outros organismos internacionais. O Brasil sempre foi um player importante nas negociações internacionais, via organizações multilaterais, então a gente não tem escolha. Nós não podemos ideologizar, como foi feito recentemente, as questões de costumes, por exemplo, que são tratados nesses organismos. Não há alternativa. Qualquer que seja o governo que vem aí, ele vai continuar a defender o multilateralismo. Eu acho que não há alternativa para o multilateralismo para países como o Brasil, que não tem excedente de poder. O nosso poder é influir nessas negociações multilaterais. O Brasil não está isento. O Brasil não é uma ilha. Estamos inserido em um contexto internacional cada vez mais interligado. Por isso que eu digo, a gente não pode ficar olhando para trás. Mudou tudo.
Comentando o programa de governo dos dois candidatos, eu queria ressaltar dois pontos. Um de cada lado. No programa do Bolsonaro tem uma coisa muito importante que é resultado da guerra, que eu não encontrei no programa do PT, que é a questão da vulnerabilidade do Brasil a partir desses acontecimentos. Tem uma série de referências corretas no programa do Bolsonaro. Essa situação nova no mundo gerou essas vulnerabilidades que a gente tem que corrigir e gerou oportunidades muito grandes para o Brasil que não estão sendo aproveitadas, e eu não vejo muito isso no programa de governo dos dois candidatos. Do lado do PT, o que eu vejo é uma um olhar para trás. Fala em reativar a política ativa e altiva. Isso tudo é coisa do passado. Foi muito importante naquela época, mas hoje as prioridades são outras, são outras completamente diferentes. O mundo mudou, é tudo diferente, e você tem que se ajustar a essas novas realidades.
Independentemente de quem esteja à frente do nosso governo no ano que vem, qual é a importância da diplomacia e da política externa no mundo atual?
Eu acho que a política externa vai ser responsável pela recuperação do prestígio do Brasil no exterior. Sempre foi assim no passado. Nos 200 anos de Brasil independente, a política externa sempre esteve adiante dos acontecimentos e, em muitas passagens, foi a política externa que recuperou o prestígio brasileiro, que recuperou a capacidade do Brasil de influir e de restaurar a nossa credibilidade. Eu acho que a política externa tem um papel muito importante no futuro governo para complementar as mudanças internas aqui. Sem se atentar ao que ocorre no mundo, vai ser muito difícil avançar naquilo que é mencionado nos programas de governo dos candidatos.
Em relação à África, o senhor acha que o continente tem que ser prioridade do Brasil nesse momento?
A América Latina e a África devem ser prioridades nossas. Está na política nacional de Defesa: o entorno geográfico brasileiro é a América Latina e a África. Nós estamos perdendo muitas oportunidades na área agrícola e na área industrial ao ignorar a África. Eu acho que isso deve ser também um dos pontos importantes da política externa.
O senhor acha que o Brasil tem que se reaproximar da Venezuela para fazer esse papel de liderança na América do Sul?
Eu acho que a nossa política em relação à Venezuela nesses últimos anos foi totalmente equivocada. Nós chegamos a fechar os consulados e retirar o embaixador de lá. Onde é que está a assistência brasileira no exterior? Eu acho que o Brasil terá um papel importante na condução de um processo de democratização de eleições livres da Venezuela. O Brasil vai fazer isso, não são os Estados Unidos ou a Europa que vão fazer isso. O Brasil tem que tomar a liderança e regularizar, normalizar, a relação com a Venezuela e ajudar a liderança venezuelana a voltar ao leito democrático naquele país
Em relação a guerra na Ucrânia, o senhor acredita que o Brasil tem que subir o tom um pouco mais em relação à Rússia, que é o país que está invadindo, ou não deve mexer com nada?
Para ser coerente com o que eu disse, eu acho que esse assunto não é de interesse nosso. Nós temos que aproveitar o que for bom para nós dessa guerra e tentar minimizar aquilo que é negativo para nós. Nós não temos que tomar partido entre o Ocidente e a Eurásia. Esse é um problema que nós aproveitamos nos fertilizantes, aproveitamos na relação importante que temos com a Rússia na questão de infraestrutura agrícola e isso foi muito bom para nós. Não podemos adotar nenhuma posição que venha no futuro prejudicar os nossos interesses mais globais.