Bolsonaro enfrenta lulistas "infiltrados" no Nordeste
Planalto quer intensificar compromissos na região e ressaltar pagamento de auxílios para reverter vantagem de Lula
SBT News
À beira do Rio Piranhas, no semiárido do Rio Grande do Norte, um casal corre para debaixo de uma lona branca suspensa por tubos de alumínios para se proteger do calor de 36ºC. Depois de acompanhar por mais de uma hora a cerimônia capitaneada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) de entrega das obras de transposição do Rio São Francisco, na última 4ª feira (9.fev), marido e mulher se desgarram do cortejo presidencial.
+ Leia as últimas notícias no portal SBT News
De Havaianas, camiseta listrada e bermuda, o homem se escora na esposa, que veste uma camiseta verde e um boné estampado com as cores do Brasil. Na delimitação cromática estabelecida pela disputa política, o verde-amarelo é o figurino de predileção dos bolsonaristas. Mas no Nordeste, onde Bolsonaro amarga sua pior avaliação entre as cinco regiões do país, as afinidades eleitorais estão mais entranhadas -- e ali também estão maiores os desafios de Bolsonaro para encurtar a distância que o separa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na disputa pelo Planalto.
Funcionária da prefeitura de Jardim de Piranhas, a mulher diz que integrou uniformizada a claque presidencial porque fora "convocada" pelo prefeito Rogério Soares, do MDB. No interior do Nordeste, a máquina pública municipal é dependente da União e os prefeitos -- de quase todos partidos -- são aliados naturais do presidente de plantão.
Ao seu lado, o marido resume a dificuldade do presidente no Nordeste, região onde segundo pesquisa Genial/Quaest* divulgada naquela mesma 4ª feira, 61% dos entrevistados reprovam seu governo. "Viemos só olhar, para conhecer o presidente, mas nós não vota nele, nós vota no Lula [sic]" disse o marido, em linguagem espontânea. O casal "lulista" apresenta uma única justificativa para apoiar enventual candidatura do petista, mesmo 10 anos após Lula ter deixado o poder: o custo de vida, a inflação.
Ambos foram gravados e filmados pela reportagem, mas pediram anonimato por temerem eventual sanção. Numa cidade com apenas 1.588 pessoas ocupadas, de acordo com IBGE, um trabalho na prefeitura é artigo essencial. Segundo o casal, o prefeito liberou os servidores para que eles pudessem ajudar a lotar o gramado do Clube Atlético Piranhas o que, de fato, aconteceu.
Na 5ª feira (10.fev), já em Brasília, durante cerimônia no Palácio do Planalto, o presidente fez questão de falar sobre o número de pessoas presentes no ato. "O evento em Jardim de Piranhas teve no mínimo 10 mil pessoas, 10 mil cabras da peste, algo inenarrável a gratidão daquele povo e a satisfação daquele povo ", destacou o presidente. Segundo o IBGE, o município tem uma população estimada de 15.044 pessoas.
Para o Palácio do Planalto não importa se na plateia estivessem lulistas infiltrados. As imagens do gramado lotado logo tomaram as redes sociais do presidente. Nas agendas pelo Nordeste, ministros ressaltaram que não há mais espaço na região para o voto de cabresto -- que é o uso da máquina pública para conseguir apoio político. É preciso convencer o eleitor, e convencê-los pelo bolso. Em Jardim de Piranhas o governo irrigou a economia local com R$ 7,1 milhões, um quinto de toda a receita anual da prefeitura, concedendo auxílio emergencial para 4.434 pessoas em 2021. Mas a transposição de intenção de votos de Lula para Bolsonaro ainda não aconteceu.
Procurado, o prefeito Rogério Soares delegou ao chefe de gabinete, Israel Donato dos Santos, os esclarecimentos. Segundo o assesor, a maioria dos órgãos da prefeitura de Jardim de Piranhas trabalha somente até o fim da manhã, e que o evento aconteceu depois do meio-dia. O chefe de gabinete disse também que alguns funcionários trabalharam na cerimônia de forma voluntária para ajudar na distribuição de água.
O relato do casal que tem preferência pelo ex-presidente Lula reflete a resiliência da estatística da última eleição presidencial. Dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostram que no município o então candidato petista, Fernando Haddad, teve 83% dos votos enquanto o presidente Jair Bolsonaro ficou com 16%.
O Nordeste é o segundo maior colégio eleitoral do país, com mais de 40 milhões de votos. Além de conquistar o voto dos "lulistas", Bolsonaro tem outro desafio: manter o apoio de quem o escolheu em 2018. É no semiárido do Nordeste que a reportagem encontrou aqueles eleitores, uma população flutuante, que não vê problema em votar em Bolsonaro e agora apoiar o ex-presidente Lula -- e vice-versa. É aquela parte pragmática do eleitorado que não está preocupada se os dois pré-candidatos dizem representar ideologias opostas. São eleitores que têm no voto a esperança de uma vida melhor, de mais dinheiro no bolso, e não querem saber se o candidato é conservador ou progressista.
Valfredo de Britto mora em Jucurutu, também na região do Seridó, no Rio Grande do Norte. O agricultor reconhece a importância da gestão Bolsonaro ter concluído a obra de transposição do Rio São Francisco -- por décadas a população do semiárido dependeu da chuva para ter água em casa. Ele afirma ter votado no atual presidente na disputa de três anos atrás, mas diz que não vai repetir o voto.
Segundo Valfredo, a escolha por Bolsonaro aconteceu porque o petista estava preso e não pôde concorrer. Lula foi preso por 580 dias em virtude de condenação em segunda instância, sob a acusação de aceitar um tríplex, no Guarujá (SP), como propina paga pela OAS em troca de um contrato com a Petrobras.
Em janeiro deste ano, o caso acabou arquivado pela Justiça a pedido da Procuradoria da República do Distrito Federal. O MP apontou a prescrição dos crimes depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou imprópria a atuação do ex-juiz Sergio Moro no caso e anulou a condenação do ex-presidente. A prisão do petista aconteceu em abril de 2018, seis meses antes da disputa presidencial. À época, Lula aparecia na frente nas pesquisas de intenção de voto.
Para Valfredo, não importa as acusações feitas contra Lula. Ele lembra que foi durante os governos do ex-presidente que conseguiu comprar a motocicleta que tem até hoje, com a qual se desloca entre a área rural e urbana de Jucurutu, cidade a cinco horas de carro da capital, Natal.
Bolsonaro esteve em cinco cidades de quatro estados do Nordeste na última semana. E por onde passou contou com a presença de apoiadores que seguiram a comitiva presidencial em caravana. Em Jardim de Piranhas, os ônibus ficaram estacionados na avenida principal da cidade, que estava com o trânsito bloqueado para que as pessoas pudessem acessar o local do evento sem risco.
Adriana de Camargo é gestora hospitalar e mora em Macaíba, na região metropolitana de Natal. Ela deixou os compromissos de lado na última semana para acompanhar Bolsonaro, "o melhor presidente da história do Brasil". Por ele, a gestora diz que vale qualquer esforço. Adriana considera que Bolsonaro resgatou os valores conservadores e é ele também que está conseguindo barrar o avanço do que ela chama de "pode tudo" da esquerda.
Ela sabe que no Nordeste não será simples reverter a vantagem petista. Na própria família, o pai e o irmão, que é caminhoneiro, são "lulistas". Para não brigar com eles, Adriana evita debater política nos encontros familiares. Ela não viajou sozinha. Com a gestora, estavam militares e uma professora. Eles fazem parte do grupo "Tudo pela Pátria", criado em Macaíba para reunir conservadores que fazem a defesa da família, da luta contra a corrupção e dos valores cristãos.
Romildo Mendes e Juarez Damasceno são militares e apoiam Bolsonaro desde que era deputado. Damasceno diz que, depois que Bolsonaro assumiu o Planalto, os casos de corrupção pararam. Em sua avaliação, as denúncias feitas sobre suposto superfaturamento na compra de vacinas, rachadinha envolvendo os filhos do presidente, laranjas do PSL, na verdade, fazem parte de uma predisposição da mídia para atacar o clã Bolsonaro.
Ambos ponderam, no entanto, que em três anos de governo, Bolsonaro atendeu apenas "demandas dos generais". Por isso, os dois militares tentam convencer colegas que não tiveram os pleitos atendidos a não abandonarem "o capitão" (ambos sempre citam a patente militar de Bolsonaro) para que as reinvindicações da categoria sejam atendidas num eventual segundo mandato. Em 26 de março, eles farão o primeiro encontro de conservadores da Macaíba para reforçar o apoio a Bolsonaro e pedir que mais gente se envolva na pré-campanha do presidente.
É com a ajuda de apoiadores como os que fazem parte do grupo "Tudo pela Pátria" que Bolsonaro vai contar para nos próximos meses tentar reverter a hegemonia petista na região Nordeste.
A tarefa deles -- e do governo -- vai além de querer multiplicar os conceitos conservadores. A missão, dizem, é convencer o eleitorado que as políticas assistenciais do governo, o pagamento do auxílio emergencial e, depois, do auxílio Brasil, melhoraram a vida na região, para que em outubro, sob as vestimentas amarela e verde do casal de Jardim de Piranhas, não haja uma camiseta vermelha.
--
*A pesquisa Genial/Quaest ouviu presencialmente 2 mil pessoas em 120 municípios, entre os dias 3 e 6 de fevereiro. A margem de erro é de 2 pontos percentuais para mais ou para menos e o nível de confiança é de 95%.