De vilã a mocinha: a pecuária neutra em emissões de gases estufa
Atualização na métrica deve revelar que o gado não está entre os causadores do aquecimento global

Pablo Valler
A partir do próximo semestre, o mundo deve conhecer uma atualização da fórmula que mede a quantidade de gases de efeito estufa (GEE) sobre nós. É o GWP*, sigla para Global Warming Potential ou Potencial de Aquecimento Global. O asterisco ao final, chamado de "star" ou "estrela" por especialistas, só serve para chamar atenção para o diferencial da métrica.
+ Leia as últimas notícias no portal SBT News
O GWP* foi citado pela primeira vez pela Organização das Nações Unidas (ONU) no relatório do Painel Intergovernamental do Clima (IPCC) ao final do ano passado. No entanto, esse novo tipo de medição é estudado há pelo menos dez anos. Incentivado, principalmente, pelo agronegócio, que via ineficiência nos parâmetros utilizados até então.
O GWP100 e o GTP100, resumidamente, consideram um período de 100 anos e como cada tipo de substância emitida se comporta. O primeiro analisa a influência dos gases na alteração do balanço energético da Terra. O segundo traz informações sobre a influência no aumento da temperatura. As metodologias foram criadas junto ao Protocolo de Kyoto, da ONU, há 25 anos.
Para comparar os gases de efeito estufa, que têm pesos e tempos de vida diferentes na atmosfera, as fórmulas equalizam suas influências com base no dióxido de carbono (CO2), substância mais comum e menos nociva. É como funciona no câmbio de moedas. Quanto dá para comprar de chicletes com R$ 1 e com US$ 1? Assim, o CO2 tem peso 1, já o metano (CH4) tem 21.
O problema estaria no fato do peso do CH4 estar superestimado. Há muitos debates. A maioria dos cientistas acredita que, na realidade, em comparação ao CO2 o CH4 seria apenas cinco vezes mais prejudicial. Além disso, há bastante diferença no tempo que a substância permanece no ar. O CH4 pode ficar por 12 anos, enquanto o CO2, de 200 a 1.200 anos.
A disparidade demorou a ser comprovada, mas foi aceita pela classe científica, inclusive pela ONU, como conta um dos relatores do IPCC, Paulo Artaxo. "Ninguém nunca inventou uma métrica melhor do que o GWP, por isso todo mundo continuava usando até que houvesse uma união e consenso entre estudos", diz ele que é professor na Universidade de São Paulo (USP).
Prejudicial à pecuária
A demora para criar uma fórmula mais justa pode ter prejudicado a pecuária. Muito se viu e ouviu que, depois dos combustíveis fósseis, a digestão de ruminantes seria a segunda principal causa do aquecimento global. Realmente, de acordo com o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (Seeg), a criação de gado correspondeu a 18,5% das 2,16 bilhões de toneladas de GEEs emitidos em todo o Brasil em 2020. Porém, quanto o segmento também capturou de GEEs no mesmo período?
Essa medida dificilmente saberemos. Pouquíssimos pecuaristas contabilizam. Mas estudiosos dizem, inclusive, que o metano da pecuária é diferente do proveninente de aterros sanitários, por exemplo. "Diferente do fóssil, que foi tirado da Terra e solto na atmosfera, o metano da pecuária é o CO2 da atmosfera capturado pela fotossíntese da planta e depois ingerido pelo gado. É um gás de efeito estufa reciclado", explica Daniel Vargas, coordenador do Observatório de Bioeconomia da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
É da FGV em parceria com a Embrapa o estudo Panorama das Emissões de Metano e Implicações do Uso de Diferentes Métricas, que mostra como a pecuária pode ser neutra sobre o aquecimento global. Isso porque o metano solto pelo gado durante a digestão, antes disso, era capim. Toda planta é composta também de CO2, capturado via fotossíntese, absorção do que há no ar. É por isso que Vargas chama de reciclado o metano da pecuária. Em outras palavras, gado e capim retiram gás de efeito estufa da atmosfera antes de emitir.
Só por esse fato, a influência da pecuária poderia ser considerada menos prejudicial ao planeta do que imaginavam até então. Quando é praticada com manejo diferenciado, com técnicas consideradas sustentáveis, a situação fica ainda mais favorável. É o caso da integração de culturas, quando no mesmo espaço de produção se tem animais, lavouras e árvores nativas ou plantadas. O sistema de ILPF tem uma série de benefícios, conforme os experimentos da Embrapa.
A presença dos animais e sua relação cíclica com a terra garantem a vida dos microorganismos, que não vemos a olho nu. A convivência das árvores com as plantas, com seus diferentes tipos de raízes, deixam o solo mais forte, com menos chance de erosão. Sem contar que, quanto mais folha, mais fotossíntese e captura dos gases. O CO2 absorvido é recebido pela terra como uma verdadeira vitamina. Por isso, solo coberto significa solo saudável.
Ainda existem outras técnicas complementares, como o plantio direto, que espalha sementes sem arar ou limpar o solo antes, simplesmente para manter a umidade tão necessária para as plantas, o que diminui o uso de fertilizantes. Tem também a rotação de culturas, com o mesmo aspecto da integração, uma diversificação de raízes.
O estudo ainda sugere a redução do tamanho do rebanho (-0,35% ao ano) com um aumento da produtividade a partir de ganhos de peso. É um incremento do volume de produção de carne por animal. Portanto, também reduzem as emissões do rebanho.
"Nesse cenário de redução do rebanho, e considerando a nova métrica GWP*, a pecuária brasileira não teria implicações sobre a temperatura do planeta já em 2040 -- ou seja, a pecuária atingiria a neutralidade climática. A neutralidade do metano é alcançada quando a atividade não adiciona mais emissões de carbono às emissões totais. Assim, a pecuária contribuiria para o aquecimento global até meados do século, mas ao atingir a neutralidade, e mantendo as emissões nesse nível, deixaria de contribuir para o aquecimento global. A fermentação entérica reduziria sua participação para apenas 2% do total das emissões do metano no Brasil", calculam os pesquisadores Talita Priscila Pinto, Cicero Zanetti de Lima, Camila Genaro Estevam, Eduardo de Morais Pavão e Eduardo Delgado Assad.
"Considerando um cenário estável do crescimento do rebanho [+ 0,33 ao ano], as emissões de metano sob a nova métrica GWP* retornariam aos níveis de 1980 -- cerca de 220 milhões de toneladas de CO2eq por ano -- já em 2030. As emissões permaneceriam nesse patamar até 2050, ano final da simulação. Já na métrica oficial GWP100 as emissões seriam de 405 milhões de toneladas de CO2eq em 2050, ou seja, um potencial de aquecimento 1,95 vezes superior", observam os autores.
Muitos podem achar impressionante como a pecuária provocou uma reviravolta em sua história. De vilã, tornou-se mocinha. O próprio setor se impressiona em como práticas mais simples, inspiradas na natureza, fazem tanta diferença. Tanto para o planeta -- e só para convencer de vez o empresário receoso -- quanto para o negócio, gerando mais renda.