Entenda o conceito de narcoestado, que não se aplica ao Brasil
Teoria de que o país atingiu a fase em que é controlada por facções criminosas ganhou força nas redes sociais

Projeto Comprova
Após a Polícia Federal abrir uma investigação para saber se há ligação entre o Primeiro Comando da Capital e a adulteração de bebidas com metanol, começaram a circular nas redes sociais publicações alegando que o Brasil seria um “narcoestado”, devido à forte presença de organizações criminosas em diversos setores da sociedade.
Posts usando a expressão “narcoestado” citam ainda, como exemplos que reforçariam essa ideia, o episódio no qual um cão foi baleado por traficantes na Favela do Irajá, no Rio de Janeiro, após ser “jurado de morte” por traficantes. Além de reportagem que aponta que ao menos 50,6 milhões de brasileiros estão em territórios controlados por facções criminosas, sendo a maior proporção da América Latina.
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Na publicação que cita o cachorro baleado, o autor afirma que o PSOL é o partido do narcoestado, em referência ao post feito pela deputada federal Érika Hilton (PSOL-SP), no qual sugeriu ao rapper Oruam a fazer “revolução pé no chão”. A parlamentar se pronunciou depois e disse que errou o tom e que desconhecia “todas as problemáticas e complexidades que existiam em torno dele”.
Oruam é filho de Marcinho VP, um dos líderes da facção Comando Vermelho e tem uma tatuagem de Elias Maluco, condenado pela morte do jornalista Tim Lopes.
O que é narcoestado?
O conceito de narcoestado tem sido citado com frequência pelo promotor de Justiça de São Paulo Lincoln Gakiya, visto como o principal nome do combate ao PCC no país. No entendimento dele, se alcança essa fase quando o crime começa a dominar prefeituras, câmaras municipais, e depois a ter influência sobre os governos estaduais, podendo então chegar a eleger um presidente ou ter ligações diretas com o chefe do Executivo federal. Segundo o promotor, o Brasil ainda não atingiu essa fase.
Na mesma linha, o professor do doutorado em Segurança Pública Pablo Lira, da Universidade de Vila Velha (UVV), ouvido pelo Comprova, entende que o termo narcoestado reflete a captura de um país pelo poder do crime organizado. “Em linhas gerais, descreve uma realidade na qual as estruturas estatais deixam de cumprir seu papel de garantir a ordem, a Justiça e o interesse público, passando a ser penetradas, controladas ou corrompidas pelas redes do narcotráfico”, avaliou.
“O que deveria ser combate e repressão ao tráfico se transforma, em muitos casos, em cumplicidade velada ou até em associação direta. O Estado, nesse cenário, em vez de proteger o cidadão, passa a proteger os próprios traficantes”, afirmou o professor, que também é membro-pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Essa discussão parece recente, mas já tem décadas. Em 1999, por exemplo, o então governador do Acre, Jorge Viana, chamou de preconceito o tratamento dado pela imprensa brasileira ao passar chamar a localidade de narcoestado devido à presença do narcotráfico.
Henrique Herkenhoff, professor do programa de doutorado da UVV, entende que não há um conceito “oficial de narcoestado”. Mas ele explica que o termo pode ser entendido como um país governado por traficantes e a serviço dos interesses deles: “Algo assim como certos países muito pequenos, que se sustentam basicamente como paraísos fiscais, onde as leis facilitam a entrada de dinheiro e outros bens de alto valor sem nenhum controle, impõem sigilo bancário extremo, não colaboram com as autoridades de outros países etc.”
Brasil pode vir a se tornar um narcoestado?
Em entrevistas dadas a diferentes veículos, Lincoln Gakiya defende a ideia de que se nada for feito para conter o avanço das organizações criminosas, o Brasil se tornará um narcoestado nas próximas décadas. “O crime organizado está num processo de crescimento exponencial. E ninguém sabe onde isso vai chegar se não tomarmos uma providência diferente de tudo que foi feito até agora”, declarou ao jornal O Globo.
Pablo Lira ressalta que estudos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública têm apontado que desde 2007 há um avanço das facções criminosas para além do eixo entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Essas organizações estão presentes em todo o país hoje e já com influência em câmaras, prefeituras, assembleias legislativas, portos e aeroportos, com o país caminhando para essa condição de narcoestado.
Herkenhoff, por sua vez, entende que o país não é nem vai se tornar um narcoestado, por acreditar que a influência de organizações criminosas em governos é pequena e funciona mais à base de corrupção pontual de autoridades, com poucos integrantes ocupando cargos eletivos.
Além disso, o professor avalia que o país não é um grande produtor de drogas, somente rota para chegar a outros países consumidores.
“Temos pouca produção de maconha e importamos a maior parte do Paraguai. Somos apenas importadores e consumidores de drogas. O Brasil apenas consome drogas, quase não produz, e serve apenas como rota de passagem. O próprio PCC deixou de focar no tráfico e está caminhando para explorar negócios legais ou pelo menos formalmente legalizados”, analisou.
Há países classificados como narcoestado?
Pablo Lira cita que países da América Latina, como Colômbia e México, têm aparecido em estudos como exemplo de localidades com características semelhantes a de um narcoestado.
“O México é frequentemente citado pela força dos cartéis que disputam territórios e desafiam a soberania estatal em certas regiões. Países da América Central, como Honduras e Guatemala, também viveram períodos nos quais o tráfico de drogas se sobrepôs às autoridades formais. Em outra escala, o Afeganistão ilustra como a produção e o comércio de ópio alimentaram estruturas políticas e militares, sustentando conflitos e regimes ao longo das últimas décadas”.
Já Henrique Herkenhoff entende que nenhum país possa ser considerado um narcoestado, embora alguns tenham a produção e exportação de drogas como parte relevante de sua economia e tenha havido influência significativa do tráfico no próprio governo, como México, Colômbia, Peru, Bolívia e Paraguai.
Investigação da Polícia Federal sobre relação de facção com metanol em bebidas
Em 30 de setembro, o diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Augusto Passos Rodrigues, afirmou que a corporação investigava se há ligação do crime organizado com a adulteração de bebidas alcoólicas com metanol.
O governador de São Paulo, Tarcisio de Freitas (Republicanos), divergiu do posicionamento da PF e disse que não havia evidência de ligação do crime organizado ao caso. O secretário estadual de Segurança Pública, Guilherme Derrite (PP), afirmou que está “completamente descartada a hipótese do PCC”.
No dia 6 de outubro, em uma coletiva de imprensa, o governador de São Paulo manteve seu posicionamento. “No dia em que começarem a falsificar Coca-Cola eu vou me preocupar… Ainda bem que não chegaram nesse ponto. Coca-Cola, até aqui, não. E a minha é normal”.
O Ministério da Saúde divulgou que o Brasil acumula 277 notificações de intoxicação por metanol em bebidas adulteradas — sendo 17 casos confirmados, 200 sob investigação e 60 descartados.
O Comprova procurou a Polícia Federal para checar o andamento das investigações. A PF respondeu, em nota, que não se manifesta sobre investigações em andamento.
Fontes consultadas: Os professores Henrique Herkenhoff e Pablo Lira e reportagens sobre o assunto.
Por que o Comprova contextualizou este assunto: O Comprova, grupo formado por 42 veículos de imprensa brasileiros para combater a desinformação, monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas, saúde, mudanças climáticas, eleições e golpes virtuais e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. O SBT e SBT News fazem parte dessa aliança. Desconfiou da informação recebida? Envie sua denúncia, dúvida ou boato pelo WhatsApp 11 97045-4984.
Para se aprofundar mais: O Comprova publica, com frequência, conteúdos com o objetivo de contextualizar assuntos em alta nas redes sociais. Alguns exemplos são o que mostrou que um post inventou declaração de Fernando Haddad culpando exclusivamente a gestão anterior por problemas econômicos e o que detalhou que a Constituição brasileira não permite construção de bomba nuclear.