Cotas raciais: como funciona banca que avalia entrada de alunos na USP
Justiça determinou que universidade aceite matrícula de estudante que se declarou pardo, mas perdeu vaga por decisão da banca que avalia a autodeclaração racial
Emanuelle Menezes
A 14ª Vara da Fazenda de São Paulo concedeu nesta segunda-feira (4) uma liminar determinando que a Universidade de São Paulo (USP) aceite a matrícula do estudante Glauco Dalalio do Livramento, que teve sua inscrição por cotas raciais negada por não ser identificado como pardo pela Comissão de Heteroidentificação da instituição.
+ UNB expulsa 15 alunos por fraudes no sistema de cotas raciais
Criada pela universidade para evitar fraudes no sistema de cotas, a banca de heteroidentificação confirma a autodeclaração feita pelos estudantes com base nas características fenotípicas, ou seja, nos traços físicos de negros (pretos e pardos).
São considerados para a aprovação fatores como cor da pele, formato do nariz, lábios e textura dos cabelos.
A banca não analisa critérios de ancestralidade. Isso significa que o que vale são as características físicas – como a pessoa é vista pela sociedade – e não se ela tem um parente negro.
Como funciona a Comissão de Heteroidentificação da USP?
Os alunos que se autodeclaram negros (de cor preta ou parda) passam por um processo de confirmação dessa declaração. Eles precisam encaminhar duas fotos, que serão analisadas por uma Comissão de Heteroidentificação. A USP tem duas bancas.
Essa comissão é formada por cinco membros: um professor da universidade, um servidor técnico-administrativo, um aluno de graduação e um aluno de pós-graduação (ambos indicados pela Coligação dos Coletivos Negros da USP), e um representante da sociedade civil.
Se uma delas entender que a autodeclaração é inconclusiva, as fotos são enviadas automaticamente para a outra. Nenhuma banca sabe se a foto está sendo analisada pela primeira ou pela segunda vez.
Caso as duas bancas não aprovem a foto, o candidato é automaticamente chamado para uma verificação adicional. Se ele ingressou pela Fuvest, a reunião será presencial; se for aluno aprovado pelo Provão Paulista ou do Enem, virtual.
A análise é feita por uma única comissão, composta por cinco membros que já participaram da etapa anterior. O estudante precisa ter a matrícula liberada pela maioria simples dos integrantes da banca, ou seja, três dos cinco membros.
O aluno que for reprovado pode apresentar um recurso, que será avaliado por uma “banca recursal”, formada por cinco professores.
As bancas são todas iguais?
Não. A lei de reserva de vagas por cotas é nacional, mas cada universidade tem liberdade para montar a sua própria banca examinadora e definir seus critérios para o aceite dos estudantes.
+ "Pagamento de dívida histórica", diz Lula ao assinar pacote de medidas para igualdade racial
Aluno perdeu vaga
Glauco Dalalio do Livramento, de 17 anos, foi aprovado no curso de direito da USP por meio da nota obtida no Provão Paulista. Ele conseguiu a vaga pela política de cotas, já que se autodeclara pardo.
O estudante teve a matrícula negada após a Comissão de Heteroidentificação da USP avaliar que ele não tinha características fenotípicas compatíveis com uma pessoa parda. Ele foi avaliado em uma banca virtual.
"O candidato tem pele clara, boca e lábios afilados, cabelos lisos, não apresentando o conjunto de características fenotípicas de pessoa negra", diz o parecer da comissão.
Em decisão liminar, o juiz Randolfo Ferraz de Campos argumentou que a análise feita por videochamada "ofende a isonomia". "Imagens geradas por equipamentos eletrônicos não são necessariamente fiéis à realidade", diz o magistrado.
O juiz ainda destacou que "não se pode mesmo olvidar que o autor é simplesmente filho de pessoa de raça negra". A USP não utiliza critérios de ancestralidade para confirmar a autodeclaração.
A universidade tem o prazo de 72 horas para cumprir a decisão. Ainda cabe recurso.
Outros casos levados à Justiça
Pelo menos outros dois estudantes que participaram de uma banca virtual de heteroidentificação também tiveram suas matrículas negadas pela USP por não possuírem características físicas típicas de negros. Eles contestam a decisão.
O reitor da USP, em entrevista para a Folha de S. Paulo, disse que a universidade vai corrigir e aprimorar as análises. Segundo ele, as bancas virtuais foram criadas para "facilitar a conversa com estudantes que moram longe de São Paulo".
+ "Diferenças não podem significar desigualdade de oportunidades e direitos", diz Anielle Franco
Cotas na USP
A USP adota as cotas para alunos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas nos cursos de graduação desde 2018. A Comissão de Heteroidentificação, criada em 2022 e implantada no vestibular de 2023, era uma demanda de estudantes negros, para prevenir fraudes.
"Desde a adoção, a universidade recebeu cerca de 200 denúncias de supostas fraudes na autodeclaração. Em 2020, houve a invalidação de matrícula de um aluno do Instituto de Relações Internacionais (IRI), por fraudes racial e socioeconômica. No ano passado, foram invalidadas as matrículas de seis estudantes matriculados na Faculdade de Medicina (FM), na Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) e na Escola de Enfermagem (EE)", diz a USP.