AIDS: a epidemia dentro da pandemia da covid chega a 2022
Depois de 40 anos, estigmas, preconceito e falta de políticas públicas rondam a doença no país
"Depois de dez dias que eu estava internada, os médicos tentaram fazer todos os exames possíveis e imagináveis para entender o que eu tinha. [...] Finalmente algum plantonista teve a ideia de fazer um teste de HIV e deu positivo", contou a poeta e jornalista Marina Vergueiro, mulher, branca, bissexual e de classe média de São Paulo.
Mesmo apresentando todos os sintomas da Aids, o estigma que a doença carrega quase a matou. "Aids é uma doença que é também atravessada pelo racismo. Porque eu sou uma mulher branca, então eles achavam que não poderia acontecer comigo. Eu quase morri por conta disso", relembra. Após 40 anos de epidemia, a Síndrome da Imunodeficiência Humana (Aids), transmitida pelo vírus HIV, ainda hoje é vista como uma doença que só atinge um público específico: homens gays.
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No entanto, qualquer pessoa que realizar atos sexuais sem proteção ou partilhar objetos perfurantes pode se infectar e se transformar em um vetor de transmissão do vírus no mundo. Só em 2020, mulheres e meninas foram responsáveis por cerca de 50% de todas as novas infecções, ou seja, um total de 750 mil das 1,5 milhão no mundo, segundo a Unaids. É preciso ressaltar que o ano de 2020, marcado pelo distanciamento social em muitos países, aumentou os casos de violência doméstica e sexual contra mulheres e crianças. No Brasil, foram registrados 9.526 estupros e 915 abusos sexuais no ano passado, de acordo com o Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos.
"Basta só uma vez", diz Marina. A poeta se infectou com o vírus durante o seu primeiro relacionamento com um homem, em 2009. Ela, que se descobriu bissexual por volta dos 20 anos, hoje, com 38 anos, afirma que só conseguiu viver sua sexualidade de forma plena há seis anos.
Marina afirma que faltou educação sexual durante a sua infância e adolescência. Uma educação sobre como evitar infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e como adotar métodos de prevenção para evitar gravidez indesejada, além de ser um espaço acolhedor para conversas. "Estou falando de acolhimento, representatividade, isso fez com que eu demorasse muito para me aceitar. A falta de educação sexual acolhedora e falta de representatividade para uma pessoa LGBTQIA+, acredito que podem ter sido um gatilho para minha infecção por HIV", ressaltou Marina.
Desmonte da saúde pública de combate ao HIV
A educação sexual é uma política pública de prevenção a ISTs. Um exemplo são as propagandas veiculadas na televisão há alguns anos sobre a importância do uso de preservativos ou da testagem do HIV. Para a infectologista Ana Helena Germoglio, houve um desmonte da saúde pública de prevenção e combate ao vírus da imunodeficiência humana.
"Hoje em dia a gente não vê mais propaganda na televisão falando a respeito da importância de utilizar o preservativo ou de fazer a testagem para HIV e acaba que se investe muito mais em medicina de hospital do que na medicina de prevenção. Investimento neste último tipo de medicina é muito mais proveitoso para a população a longo prazo, né? Porque se eu trabalhar na prevenção de doenças esse paciente vai custar para mim muito menos no futuro porque é muito mais caro manter um paciente na UTI", diz a médica.
O boicote ao programa de HIV no Brasil é uma batalha que Marina trava como ativista da causa. Para a poeta, o atual governo joga contra as pessoas que vivem com HIV e não entende a importância da adoção de políticas públicas para a doença, que é uma questão de saúde pública.
Um dia depois da posse do presidente Jair Bolsonaro (2.jan.2019), uma cartilha dirigida a homens trans foi tirada do site do Ministério da Saúde. Produzida pela pasta em parceria com organizações não-governamentais, o material trazia dicas de prevenção de infecções sexualmente transmissíveis.
Um outro ponto negativo para o combate ao HIV no governo Bolsonaro, foi o decreto n° 9795/19 assinado pelo presidente, pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e pelo então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. O texto definiu a mudança do nome do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais para Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis, rebaixando a área de HIV/Aids a uma coordenação.
Além disso, com o novo modelo que colocou a Aids, infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), hanseníase, tuberculose e hepatite no mesmo guarda-chuva, a União repassa um valor único para o tratamento de todas essas doenças, e não especificamente para cada uma, como ocorria antes.
Em 5 de fevereiro de 2020, o presidente, ao se posicionar sobre a campanha do governo que incentivava a abstinência sexual, afirmou que "uma pessoa com HIV, além de ser um problema sério para ela, é uma despesa para todos aqui no Brasil". Errado, já que uma pessoa tratada não transmite o HIV. "Ouso dizer que muitos pacientes [com HIV] têm uma qualidade e expectativa de vida até melhores dos pacientes sem o vírus, porque eles se cuidam, fazem os seus exames, fazem tratamento corretamente", destaca a infectologista Ana Helena Germoglio. Além de não agravarem a sua situação, quem faz o tratamento para o HIV, não transmite o vírus por via sexual por terem atingido a carga viral suprimida.
"O último ataque contra nós foi o qual ele disse que a vacina contra a covid-19 causava Aids", destaca Marina. Esta última afirmação falsa foi feita pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) durante a transmissão de uma live em suas redes sociais, no dia 21 de outubro. No dia 3 de dezembro, o presidente virou alvo de um inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF), pela associação errônea da vacina contra a covid-19 com o risco de contrair o vírus HIV e desenvolver Aids.
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Situação da Aids no Brasil
No último dia 1°, Dia Mundial de Combate à Aids, o Ministério da Saúde lançou a campanha "Prevenir é sempre a melhor escolha". E junto com o slogan, os dados epidemiológicos do país foram divulgados. No Brasil, 694 mil pessoas estão em tratamento para a doença e, em 2021, 45 mil pessoas começaram a terapia antirretroviral. De acordo com o Ministério da Saúde, o tratamento chega a 81% das pessoas diagnosticadas com HIV em todo o país.
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No entanto, para quem não chega, o tratamento se torna inacessível e pode ser fatal. Em 2020, foram registrados 10.417 óbitos por Aids contra 10.687 no ano anterior, uma queda de apenas 2,52%. "No Brasil já há alguns anos morrem cerca de 10.000 pessoas por Aids. Isso são mortes completamente evitáveis, não tem mais porque a gente morrer de Aids em 2021, não tem porquê", ressalta Marina. Para a jornalista, é preciso combater o vírus HIV, mas também o vírus social do preconceito, do estigma e da pobreza.
A infecção pelo vírus não tem mais rosto, mas a morte sim. É o de pessoas que não têm acesso a direitos básicos como comida, água, higiene, saúde. São pessoas negras e pobres. "HIV e a AIDS também é uma infecção social, porque ela não tá sozinha, ela não acontece somente ali é na hora de uma relação sexual, mas ela se estende na nossa vida no dia a dia, no atravessamento do racismo, do machismo, da violência sexual, da violência doméstica e do uso de drogas", destaca Marina. Segundo a poeta, para tratar o HIV e Aids é preciso uma política integrada, é preciso comer bem, morar bem, ter acesso a transporte para poder fazer o tratamento e fazer os exames de rotina.
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