Caso Marielle: os pontos cegos para a PF confirmar a versão do delator
Roteiro contado por Ronnie Lessa sobre crime tem mortes, adulteração de locais e fatos não comprovados
A Polícia Federal (PF) encontrou pontos cegos na hora de refazer os caminhos e confirmar fatos narrados pelo miliciano Ronnie Lessa em sua delação premiada. Ele foi o homem que apertou o gatilho da arma que matou Marielle Franco (PSOL-RJ) e seu motorista, Anderson Gomes, em 14 de março de 2018.
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São pelo menos cinco lapsos, na cadeia de fatos, que deveriam ser confirmados pelos investigadores, com base nas informações dadas pelo delator. Estão na lista o encontro de acerto do crime e o local de descarte e de teste da arma. No relatório, a PF detalha os pontos e aborda a dificuldade de apurar um crime passados seis anos.
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"Tais amarras temporais impõem à equipe de investigação limites intransponíveis que seriam supridos caso fossem adotadas providências necessárias em momento contemporâneo aos fatos", registra o relatório da PF, que resultou nas prisões do deputado federal Chiquinho Brazão, do conselheiro do TCE do Rio Domingos Brazão e do delegado e ex-chefe da Polícia Civil fluminense Rivaldo Barbosa, no domingo (24).
Arma usada
Nem o local onde a arma usada por Lessa matar Marielle foi testada, nem o local de descarte dela e das munições puderam ser comprovados.
A metralhadora usada para o crime, segundo Lessa, foi fornecida por milicianos da comunidade de Rio das Pedras – área dominada pelo miliciano Adriano Magalhães da Nóbrega, o Capitão Adriano, morto em 2020 na Bahia.
Em sua delação, Lessa afirmou que fez um teste antes do crime, disparando uma rajada de "cinco a seis tiros", em um barranco de terra, em um motel abandonado, na Estrada do Catonho, Zona Oeste do Rio.
A PF afirmou que chegou a ir até o local citado por Lessa para encontrar "fragmentos balísticos". O administrador do local disse aos agentes, entretanto, que, devido ao crescimento da vegetação e da queda de terra do barranco, o motel contratou um trator para fazer a limpeza da área entre 2018 e 2019.
Lessa também contou onde descartou a arma: um córrego no meio da comunidade de Rio das Pedras. O local passou por completa transformação urbana desde o crime, impossibilitando a reconstituição do episódio.
"Para nossa surpresa constatou-se que, em vez de um córrego, havia um rio no local", informa o relatório. Os agentes ouviram moradores informalmente e descobriram que obras de desassoreamento do córrego foram realizadas pela prefeitura para ampliar o curso da água.
Mortes
A PF destaca as dificuldades na apuração do caso e na comprovação dos fatos narrados na delação de Lessa. Além das alterações de cenários, cita a morte de dois alvos centrais: o Capitão Adriano e o miliciano Edmilson Macalé, que foi o elo entre a família Brazão e os executores do crime. Cita ainda a ação de delegados e policiais que dificultaram as apurações, encobrindo rastros e criando dificuldades.
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"Diante do abjeto cenário de ajuste prévio e boicote dos trabalhos investigativos, somado à clandestinidade da avença perpetrada pelos autores mediatos, intermediários e executor, se mostra bem claro que, após seis anos da data do fato, não virá à tona um elemento de convicção cabal acerca daqueles que conceberam o elemento volitivo voltado à consecução do homicídio de Marielle Franco e, como consequência, de seu motorista Anderson Gomes", registra o relatório final da PF.
Segundo a PF, Macalé foi o miliciano procurado pelos Brazão, no segundo semestre de 2017, que atuaria na "área de Oswaldo Cruz, reduto eleitoral e imobiliário da família, e lhe fizeram a proposta para matar a vereadora Marielle Franco".
Apesar dos pontos cegos na checagem dos fatos narrados pelo delator por causa do tempo passado desde o crime e da ação de policiais interessados em desvirtuar a apuração, a PF conclui ter conseguido fechar o roteiro da execução da vereadora do PSOL.
"A concatenação dos fatos trazidos pelos colaboradores, notadamente Ronnie Lessa, e a profusão de elementos indiciários revestidos de um singular potencial incriminador dos irmãos Brazão são aptos a atribuir a eles a autoria intelectual dos homicídios ora investigados", registra a PF.
A comprovação dos fatos narrados na delação, chamadas de provas de corroboração, passou a ser exigida em 2019, após a aprovação do pacote anticrime pelo governo federal.