Saiba por que obesidade infantil e desnutrição têm mais relação do que parece
Relatório da UNICEF, divulgado nesta semana, mostra que a obesidade superou a desnutrição como a forma mais prevalente de má nutrição

Caroline Vale
Uma pesquisa da UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), divulgada nesta semana, mostrou que a obesidade infantil superou a desnutrição como a forma mais prevalente de má nutrição em 2025, afetando 188 milhões de crianças e adolescentes. Os dados, de mais de 190 países, são de pessoas entre 5 e 19 anos.
Segundo o relatório, quase um em cada 10 jovens dessa faixa etária vive com obesidade. O aumento é puxado pela ampla disponibilidade de produtos industrializados, muitas vezes mais baratos e acessíveis do que frutas, legumes e proteínas.
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Há quem conclua que a obesidade é preferível à desnutrição, mas nenhum dos dois quadros é saudável. Ao SBT News, o pediatra Paulo Telles, membro da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), comentou o assunto.
"Uma criança com obesidade também pode estar desnutrida, porque quando a gente fala de desnutrição não é só quantidade de alimento, a gente pode falar também da deficiência de alguns nutrientes essenciais. Então é possível que uma criança obesa tenha deficiência de vitamina, de proteínas. Isso principalmente quando se tem uma dieta muito rica nos alimentos não saudáveis, nos ultraprocessados", afirmou.
Segundo o médico, quando uma criança ou adolescente com obesidade está com alguma deficiência nutricional, ela pode apresentar cansaço e ficar mais suscetível a infecções. "Também pode ter queda de cabelo, micronutrientes com déficit, mudanças no intestino, de flora intestinal", explicou.
Em setembro, a Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP) promove a campanha “Setembro Laranja: combate à obesidade infantil”, com o objetivo de dar visibilidade ao problema, estimular práticas alimentares mais saudáveis nas escolas e em casa, além de incentivar a prática de atividades físicas desde cedo.
Obesidade no Brasil
No Brasil, os números mostram que a urgência é real: um em cada três adolescentes de 10 a 19 anos está acima do peso, segundo levantamento nacional com base em dados do Sistema Único de Saúde (SUS). Em dez anos, o sobrepeso entre jovens dessa faixa etária cresceu quase 9%, atingindo 2,6 milhões de brasileiros, número que já preocupa autoridades de saúde em todo o mundo.
O pediatra alerta que a obesidade começa a ser construída dentro de padrões culturais transmitidos de geração em geração.
“Nossa cultura ainda busca o ‘comer bastante para ficar saudável’. Muitos pais crescem com frases como ‘rapa o prato para crescer’ ou ‘a gestante deve comer por dois’. Esses hábitos, embora comuns, acabam reforçando a cultura da obesidade”, afirma.
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Riscos à saúde
A obesidade infantil não é apenas uma questão estética: ela aumenta consideravelmente o risco de doenças como diabetes, hipertensão, colesterol alto, problemas cardíacos e até AVC ainda na juventude.
A curto prazo, o excesso de peso também pode levar a dificuldades de mobilidade, baixa autoestima, bullying e prejuízos emocionais.
De acordo com a pediatra Anna Bohn, também membro da SBP, o diagnóstico é feito clinicamente, a partir do IMC adequado para cada idade. “Existem diferentes graus de sobrepeso e obesidade, que precisam ser acompanhados de perto. Muitas vezes, já encontramos alterações de colesterol, açúcar no sangue e até pressão alta em crianças cada vez mais novas”, alerta.
Este ano, a gravidade do problema levou o Conselho Federal de Medicina (CFM) a autorizar a cirurgia bariátrica em adolescentes a partir dos 14 anos.
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Dicas práticas para pais e cuidadores
⦁ Seja exemplo – Crianças aprendem mais pela observação do que pela imposição.
⦁ Atividade física em família – Praticar exercícios juntos fortalece vínculos e cria hábitos duradouros. Além disso, incluir a criança no processo, desde a recepção dos alimentos até o preparo e a organização das refeições.
⦁ Prefira comida de verdade – Frutas, legumes, grãos e proteínas magras devem estar à frente dos ultraprocessados.
⦁ Controle o uso de telas – Após os 2 anos, limite o tempo e nunca use telas como companhia durante as refeições.
⦁ Introdução alimentar consciente – Respeite sinais de fome e saciedade e ofereça variedade de texturas e sabores desde cedo.

Para o pediatra Paulo, é essencial respeitar a autorregulação natural da fome e saciedade das crianças, presente desde o aleitamento materno. Além disso, ele reforça a importância de não usar comida como recompensa.
“Ao invés de dizer ‘se você se comportar, te dou um sorvete’, proponha uma atividade física em família, como jogar bola no parque. Isso ajuda a não associar o comer apenas ao prazer e à recompensa”, completa.
O tratamento, segundo a médica Anna Bohn, não se resume a dietas restritivas. “A chave está em mudar o estilo de vida: alimentação equilibrada, sono adequado, prática de esportes e menos tempo de tela. O uso de medicamentos pode ser indicado em casos específicos, mas nunca substitui as mudanças de hábitos”, explica.
Papel das escolas
Uma das chaves para virar esse jogo está dentro das escolas. Segundo Mariana Ruske, pedagoga e fundadora da Senses Montessori School, instituições de ensino tem grande responsabilidade nesse cenário.
“A infância é a fase mais importante para a consolidação do paladar, permeando escolhas que a criança tende a sustentar por toda a vida. A escola deve ser consciente e consistente ao oferecer alimentos variados, nutritivos e minimamente processados, criando um ambiente que incentive hábitos positivos. Essa responsabilidade não se restringe ao cardápio, mas envolve também o modo como o alimento é apresentado, o ritual das refeições e a relação com a comida.”
Grande parte das crianças passa mais tempo na escola do que em casa. Por isso, o ambiente escolar pode ser tanto um aliado quanto um vilão na luta contra a obesidade. Cantinas que priorizam salgadinhos, biscoitos recheados e refrigerantes contribuem para perpetuar o problema.
“As crianças são extremamente sensíveis ao ambiente. Se normalizam o consumo de ultraprocessados na escola, esse hábito tende a se perpetuar na vida adulta. Já quando participam do preparo e da escolha dos alimentos, há maior adesão a hábitos saudáveis”, explica Mariana.
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Entre os maiores desafios enfrentados pelas instituições estão a conscientização da própria equipe escolar, o alinhamento com as famílias e o apelo sensorial dos ultraprocessados.
“A consistência entre escola e família é o que realmente forma hábitos sólidos. Quando os dois ambientes caminham juntos, a criança cresce mais saudável, e a comunidade escolar fortalece sua reputação de cuidado integral”, reforça a pedagoga.