Gastrite não vira úlcera: entenda as diferenças, causas e tratamentos
Entenda, de forma simples, a diferença entre inflamação do estômago e ferida profunda, os vilões mais comuns e como tratar com segurança


Brazil Health
"Gastrite" e "úlcera" não são a mesma coisa: gastrite é inflamação da mucosa do estômago (confirmada ao microscópio), enquanto a úlcera é uma ferida que atravessa essa camada. Uma não precisa "virar" a outra, embora alguns tipos de gastrite e agressões (como Helicobacter pylori e anti-inflamatórios) favoreçam o aparecimento da úlcera.
+ "5 golpes + 5 compressões": entenda novas diretrizes de desengasgo em bebês, crianças e adultos
O que é gastrite, o que é gastropatia e o que é úlcera
Quando o patologista observa um fragmento da mucosa do estômago ao microscópio e encontra excesso de células inflamatórias (linfócitos, plasmócitos, neutrófilos), isso se chama gastrite. Se há dano e regeneração da mucosa com pouca ou nenhuma inflamação, o nome técnico é gastropatia (por exemplo, por bile, álcool ou anti-inflamatórios).
Essas são categorias histológicas: descrevem como o tecido está reagindo. Já úlcera é uma "cratera" que atravessa a camada muscular da mucosa e alcança camadas mais profundas; quando o dano fica só na superfície, chamamos de erosão. Essa diferença de profundidade é a fronteira anatômica entre erosão e úlcera e explica por que a úlcera sangra, perfura ou estreita a saída do estômago com muito mais facilidade.
"A úlcera já nasce úlcera?"
Na prática clínica, a úlcera não precisa passar pela etapa de gastrite visível ao endoscopista para existir. Ela surge quando a agressão supera as defesas da mucosa e o dano já é profundo (ulcerado). Em muitos pacientes há gastrite crônica de base — com ou sem H. pylori —, mas nem toda gastrite evolui para úlcera, e nem toda úlcera é o "estágio final" de uma gastrite.
São entidades distintas que frequentemente convivem. As revisões recentes reforçam essa distinção e colocam o foco nos agentes causais que abrem caminho para a úlcera: a bactéria H. pylori, os anti-inflamatórios não esteroides (AINEs, incluindo aspirina) e, em situações críticas (UTI), o estresse fisiológico grave.
Como as úlceras acontecem (sem mistério)
Duas forças puxam a corda: agressores (ácido, pepsina, AINEs, H. pylori) e defesas (muco, bicarbonato, boa circulação, renovação celular). A H. pylori desregula a produção de ácido e inflama a mucosa; os AINEs reduzem as prostaglandinas, que fazem parte da defesa, deixando a parede mais vulnerável. O resultado é uma quebra focal e profunda da mucosa: a úlcera.
A literatura atual coloca H. pylori e AINEs como os dois motores mais comuns dessa quebra; quando nenhum dos dois está presente, falamos em úlcera "idiopática", menos comum e com evolução geralmente mais teimosa.
Quão importante é H. pylori hoje?
Globalmente, a infecção caiu nas últimas décadas, mas ainda é muito prevalente (cerca de 44% dos adultos entre 2015 e 2022) e segue ligada à úlcera e ao câncer de estômago. Erradicar a bactéria muda o curso da doença: além de cicatrizar a úlcera com inibidores de ácido, remover o H. pylori reduz de forma marcante a chance de a úlcera voltar.
Sínteses de evidências (metanálises de ensaios) mostram reduções relativas de 70% a 85% na recorrência de úlcera ou de dor/hemorragia relacionada à úlcera após a erradicação.
E os anti-inflamatórios (AINEs)?
Nesse caso, o risco depende da molécula e da dose. Em termos de risco relativo de sangramento ou perfuração do trato gastrointestinal alto, comparado a não usuários, estimativas contemporâneas apontam valores aproximados de 1,9 para inibidores seletivos de COX-2, 2,7 para ibuprofeno, 4,0 para diclofenaco e 5,6 para naproxeno.
Em pacientes com alto risco de sangramento (por exemplo, história de hemorragia por úlcera), combinar um COX-2 com um inibidor de bomba de prótons (IBP) reduz ainda mais a recorrência de sangramento do que o COX-2 sozinho. Esses achados orientam a prevenção quando o AINE é realmente indispensável.
Diagnóstico e por que a biópsia pesa mais do que a "cara" da lesão
A endoscopia enxerga a úlcera e permite tratar complicações, mas o aspecto endoscópico isolado não é confiável para excluir câncer em úlcera gástrica. Por isso, a conduta baseada em evidências recomenda biopsiar a úlcera gástrica e, muitas vezes, repetir a endoscopia em 4 a 8 semanas para documentar cicatrização e rebiopsiar se não houve fechamento completo.
Dados recentes também mostram quais características endoscópicas aumentam a probabilidade de malignidade (bordas irregulares ou elevadas, localização no corpo/cárdia, atrofia de fundo), mas mesmo bons modelos preditivos não dispensam o histopatológico.
+ VÍDEO: Reconheça os sinais de AVC e saiba o que fazer
Tratamento, em linguagem direta
Para úlcera por H. pylori, o pilar é erradicar a bactéria com antibióticos em esquema guiado por diretrizes atualizadas, sempre por 14 dias. Depois, faz-se o teste de cura — teste respiratório da ureia, antígeno fecal ou biópsia — pelo menos 4 semanas após o fim dos antibióticos, suspendendo IBP por 2 semanas para evitar falso-negativo. Para úlcera por AINE, a regra é retirar o AINE, se possível; se não, proteger com IBP e preferir, quando indicado, um COX-2 (como o celecoxibe), avaliando o risco cardiovascular.
Então, afinal, gastrite vira úlcera?
Não necessariamente. Gastrite é um padrão inflamatório; úlcera é um defeito profundo. Há cenários em que uma gastrite específica (por exemplo, a antral por H. pylori) favorece a formação de úlcera duodenal ao aumentar o ácido; outras vezes, uma gastropatia por AINE reduz as defesas sem inflamação exuberante e a úlcera aparece de pronto.
Em ambos os casos, a mensagem é a mesma: identifique e trate a causa (bactéria, AINE, estresse fisiológico), cicatrize a lesão com supressores de ácido quando indicado e confirme a cura quando houver H. pylori.
E quando a úlcera é "idiopática"?
Quando excluímos H. pylori, AINEs e outras causas, o comportamento costuma ser mais recidivante e com risco maior de complicações do que nas úlceras "clássicas". A evidência aqui é mais antiga e limitada, mas consistente entre estudos. Nesses casos, mantém-se a supressão ácida por mais tempo, reavalia-se medicação "escondida" (AINE de balcão, fitoterápicos) e redobra-se a vigilância clínica.
O que levar para casa
Gastrite e úlcera são coisas diferentes. A úlcera não nasce obrigatoriamente de uma gastrite — ela surge quando a agressão supera a defesa e o dano já é profundo. Tratar a causa é decisivo: erradicar H. pylori muda a história natural (com recidiva anual muito baixa após a cura), e o uso criterioso de IBP/COX-2 reduz eventos em quem precisa de AINE. Em úlcera gástrica, biópsia e reavaliação documentada são medidas de segurança oncológica que não devem ser puladas.
Dr. Antonio Couceiro Lopes - CRM/SP 100.656 | RQE 26013 - Cirurgião do Aparelho Digestivo | Membro da Brazil Health









