Polícia

'Meu filho caiu do 9º andar sob os cuidados da minha ex-patroa e decidi virar advogada'

Ao SBT News, Mirtes Santana, mãe de Miguel, morto aos cinco anos, denuncia inconsistências no processo criminal contra Sari Corte Real, que se estende há anos

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Mirtes Renata Santana de Souza em sessão de fotos para celebrar a conclusão do curso de direito | Fotos: Arquivo pessoal

"Transformei lágrimas em força, revolta em coragem e luto em luta". Foi assim que Mirtes Renata Santana de Souza, ex-empregada doméstica de 38 anos, anunciou ao mundo que estava prestes a se formar em direito, cinco anos depois da morte do filho, Miguel Otávio Santana da Silva. Ele morreu aos cinco anos, depois de ser vítima de uma tragédia enquanto estava sob os cuidados da ex-patroa de Mirtes, Sari Corte Real.

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Em 2 de junho de 2020, Miguel caiu do nono andar do Condomíno Pier Maurício de Nassau, um dos imóveis de luxo do conjunto conhecido como "Torres Gêmeas", no centro do Recife. Mirtes havia descido ao térreo para passear com a cadela dos patrões, enquanto Sari pintava as unhas com uma manicure. Em determinado momento, o menino saiu do apartamento, no quinto andar, e correu até o elevador.

Imagens de uma câmera de segurança mostram Sari apertando um botão do elevador e deixando a porta fechar com Miguel dentro. Ele foi parar no nono andar do prédio, onde era a cobertura e, perdido, caminhou até um vão onde fica o maquinário dos aparelhos de ar-condicionado. O menino despencou de uma altura de 35 metros e morreu enquanto era socorrido.

Sari foi presa em flagrante na época e autuada por homicídio culposo, mas pagou fiança de R$ 20 mil e foi liberada. Em 2022, ela foi condenada a oito anos e seis meses de prisão por abandono de incapaz com resultado morte e, um ano e meio depois, a pena foi reduzida para sete anos, após apelação da defesa. A ré segue em liberdade porque ainda há recursos pendentes no processo. Atualmente, ela cursa medicina numa faculdade particular em Jaboatão dos Guararapes, na região metropolitana do Recife.

Em entrevista exclusiva ao SBT News, Mirtes fala sobre a decisão de cursar direito, o que significa ser a primeira pessoa da família a ter ensino superior e supostas irregularidades do processo criminal contra Sari. Hoje, ela é assessora parlamentar na Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (Alepe) e, paralelamente, ativista antirracista na Articulação Negra de Pernambuco (Anepe).

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

Você está se formando em Direito. Como e quando decidiu fazer o curso?

Resolvi cursar direito quando me dei conta de várias irregularidades no caso do Miguel. Eu sabia que tinha alguma coisa errada. Então resolvi fazer o curso para entender melhor tudo o que estava acontecendo e saber como proceder diante de certas irregularidades. E também para ajudar outras pessoas a não passar pelo que venho passando, com o judiciário pernambucano, que é extremamente racista, misógino e classista. Eu precisava estudar para compreender tudo isso.

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Quando o Miguel morreu sob os cuidados da sua ex-patroa, você conseguia enxergar todas as camadas que o caso envolvia, inclusive a questão racial?

Não. Fui entender isso só depois de fazer uma formação política. Até mesmo pessoas que, naquela época, também não viam o caso do Miguel como racismo, com o tempo começaram a enxergar isso, principalmente dentro do âmbito judiciário.

Não só o caso do meu filho, mas de crianças pretas, homens pretos, mulheres pretas. Costumo trazer um exemplo bem nítido para as pessoas entenderem a diferença de tratamento.

O caso do Henry Borel [menino que morreu em março de 2021, aos quatro anos, após ser vítima de agressões por parte da mãe e do padrasto] num instante foi resolvido [os dois estão presos preventivamente desde abril daquele mesmo ano e começarão ser julgados em março do ano que vem]. Enquanto isso, o caso do meu filho se estende há mais de cinco anos.

Hoje, os desembargadores estão sentados em cima do processo e Sari está sendo beneficiada. Ela pagou uma fiança e está podendo recorrer ao processo em liberdade. Outros casos, principalmente de pessoas pretas, que cometeram crime de menor gravidade, não tiveram essa chance.

Se fosse eu que tivesse cometido esse crime contra um filho de Sari ou uma filha de Sari, eu já estaria presa. Talvez até morta. É por isso que estou estudando. Preciso ocupar esse espaço para diminuir essa injustiça.

O Judiciário não reconheceu, então, se tratar de um caso de racismo?

Não. O juiz não enxergou o racismo por parte de Sari, uma mulher branca, mas enxergou por parte de mim e de minha mãe [em junho de 2022, o juiz José Renato Bizerra, titular da 1ª Vara dos Crimes contra a Criança e o Adolescente da Capital, solicitou que Mirtes e Marta Santana [que também trabalhava como doméstica para os Corte Real] fossem investigadas por indícios de maus-tratos, humilhação, racismo e cárcere privado contra Miguel].

A decisão foi tomada a partir do depoimento de uma testemunha de Sari, ouvida de forma sigilosa dentro do processo. Nós pedimos que o processo fosse anulado e o juiz negou, afirmando que não haveria prejuízos no andamento do processo. E assim ele seguiu.

Mulheres pretas cometendo racismo contra uma criança preta. Como pode isso?

[Depois da sentença, o juiz se afastou do caso e o pedido de investigação contra Mirtes e sua mãe foi retirado do julgamento. A defesa de Mirtes recorreu pedindo que fossem suprimidas questões revitimizantes, fenômeno jurídico por meio do qual a vítima experimenta um sofrimento continuado e repetitivo, mesmo após cessada a violência originalmente sofrida.

Mirtes e Marta Santana | Fotos: Arquivo pessoal
Mirtes e Marta Santana | Fotos: Arquivo pessoal

Você disse que, desde o início, identificou irregularidades no processo. Quais são elas?

Primeiramente, a forma com que Sari foi tratada na delegacia, que foi aberta mais cedo para recebê-la — inicialmente, o advogado dela pediu que ela fosse ouvida no prédio da Polícia Civil, mas o pedido foi negado.

Houve também diversas irregularidades no decorrer do processo. Sari pagou uma fiança de R$ 20 mil para responder em liberdade. A fiança tem critérios, e ela quebrou um deles. Caso a pessoa se mude de residência, ela precisa informar à Justiça. Ela se mudou e não avisou.

Sari passou quase um ano e meio fora de sua residência. Nós reunimos provas. Quando o oficial de Justiça chegou nas Torres Gêmeas [os edifícios residenciais de luxo Píer Maurício de Nassau e Píer Duarte Coelho, popularmente conhecidos como Torres Gêmeas, no Recife, onde Sari mora], o porteiro disse: ‘Ela não mora mais aqui há um ano’. O oficial de justiça relatou isso na documentação e mostramos ao juiz. Ele negou o pedido de prisão.

Agora ela voltou para as Torres Gêmeas, mas onde ela estava morando antes? Ninguém sabe.

O juiz acobertou Sari e isso vem acontecendo até hoje. Ela levou uma testemunha falsa, um psicólogo para dizer que atendia meu filho. Era para o juiz ter dado voz de prisão para aquela testemunha, mas ele simplesmente o mandou se retirar da sala.

Além disso, a forma com que Sari e o advogado dela foram tratados ali na sala de audiência foi absurda. Pareciam amigos ali conversando, rindo. Cadê a imparcialidade?

Hoje, Sari está solta, recorrendo em liberdade, fazendo faculdade de medicina, viajando, vivendo a vida dela como se nada tivesse acontecido — e tudo isso proporcionado pelo próprio Judiciário.

Uma mulher que cometeu um crime, que ainda está solta, enquanto pessoas que cometeram crimes de menor gravidade estão presas. Então, há o racismo, há o privilégio de ser branco. É o pacto da branquitude. Mas eu acredito que a Justiça há de ser feita.

Sari Corte Real | Foto: Reprodução/SBT Brasil - 06.12.2021
Sari Corte Real | Foto: Reprodução/SBT Brasil - 06.12.2021

Você teve algum contato com a Sari desde o ocorrido? Ela te ofereceu ajuda em algum momento ou te procurou para pedir perdão?

Nenhum contato. No início, quando o caso ainda estava na fase de investigação, Sari nos mandou uma carta com um pedido de perdão, mas esse pedido não foi para mim. Foi um perdão midiático, porque o marido dela [Sérgio Hacker (PSB), ex-prefeito de Tamandaré], à época era prefeito e estava chegando perto das eleições. As eleições estavam ficando muito caras para o partido do Sérgio, então eles tentaram dar uma amenizada com essa carta. Mas não foi uma carta para mim, foi uma carta para a mídia.

Com relação ao perdão... ela tem que pedir perdão a Deus, não a mim. A Deus. Por todo o mal que ela me fez. Eles nunca me procuraram para dar assistência nenhuma, em nada, em nada mesmo. Pelo contrário, vêm fazendo de tudo para me prejudicar, para fazer com que o processo não ande.

O caso completou cinco anos em 2025. Ainda não houve justiça, mas houve algum avanço?

Sim, principalmente com relação às leis. Há uma lei aqui no estado, conhecida como "Lei Miguel", que proíbe o uso de elevadores por crianças menores de 12 anos que estejam desacompanhadas de um adulto.

Recentemente protocolei uma emenda a esse projeto para que seja obrigatória a afixação de placas de advertência sobre a regra nos elevadores. Em alguns elevadores, não tem o nome de Miguel, principalmente no elevador do prédio onde Sari mora. O nome do meu filho não foi colocado para não constrangê-la.

É importante que haja essa placa para que as pessoas se lembrem do que aconteceu e tenham um pouco mais de consciência com relação à segurança das crianças.

Você é a primeira da sua família a fazer curso superior? Me conte um pouco do seu contexto familiar.

Sim, fui a primeira. Depois de mim, minha irmã por parte de pai também ingressou no ensino superior, está cursando educação física.

Minha mãe hoje é empregada doméstica. Quando mais jovem, trabalhava como terceirizada no antigo Bandepe, que era um banco. Depois que conheceu meu pai e engravidou, parou de trabalhar fora para cuidar dos filhos. Ela tem um orgulho danado de mim por eu estar concluindo a faculdade.

Já meu pai teve vários trabalhos. Foi marchante [profissional que negocia gado para açougues], vigia de prédio, motorista particular. Sempre fazia uma coisa ou outra para trazer o sustento para dentro de casa.

Você é uma mulher preta que decidiu cursar direito a partir da sua própria vivência. O que isso significa para você?

Significa quebrar barreiras estatísticas. Como eu disse, há esse pacto da branquitude que faz de tudo para que não ocupemos esses espaços. E eu, neste momento, estou quebrando essa barreira.

Desde quando meu filho era vivo, eu procurava emprego em lojas e afins. Nunca conseguia um emprego bom, um emprego decente. Onde fui parar? Trabalhando como empregada doméstica. É isso o que eles [o sistema] fazem. Eles sempre querem nos empurrar para esse lugar de servidão, como era no período da escravidão. Só que acabou. Nós vamos ocupar todos os espaços que estão aí para serem ocupados.

Mirtes Santana durante protesto por justiça no caso da morte de seu filho, Miguel | Foto: Arquivo pessoal
Mirtes Santana durante protesto por justiça no caso da morte de seu filho, Miguel | Foto: Arquivo pessoal

O seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) foi sobre o trabalho escravo contemporâneo, com foco nas empregadas domésticas. Poderia falar um pouco sobre o projeto?

Fiz uma análise da proteção constitucional brasileira com foco nas trabalhadoras domésticas. Abordo também o fato de que, de certa forma, o trabalho escravo se perpetua até os dias de hoje, mesmo com a assinatura da Lei Áurea [lei assinada em 13 de maio de 1888, que declarou extinta a escravidão no Brasil].

Para ilustrar minha tese, trago dois exemplos: o caso de Madalena Gordiano [mulher preta mantida em condições análogas à escravidão por 38 anos, em Patos de Minas (MG), e resgatada em 28 de novembro de 2020] e Sônia Maria de Jesus [mulher preta com múltiplas deficiências, resgatada após mais de 40 anos de trabalho doméstico análogo à escravidão, em maio de 2024].

Uso esses dois casos para falar sobre avanços e retrocessos das políticas públicas que deveriam proteger essas pessoas. Madalena foi, aos poucos, reinserida na sociedade e teve seus direitos garantidos enquanto mulher, preta e cidadã. Já Sônia Maria, uma mulher surda, não oralizada (o que é isso?) [e também com visão monocular], estava sendo escravizada justamente por um desembargador do Rio Grande do Sul, [alguém que deveria protegê-la].

Após ser resgatada, Sônia estava no processo de ser entregue à família e esse desembargador conseguiu uma liminar no STJ [o Supremo Tribunal de Justiça] para reaver a guarda de Sônia, como se ela fosse um objeto. Hoje, Sônia é assistida por assistentes sociais e uma procuradora vai visitá-la regularmente para saber se o desembargador está cumprindo o combinado, se Sônia está recebendo salário, se está fazendo o curso de libras para aprender a se comunicar.

Até pouco tempo atrás, essa procuradora conversou com Sônia e ela disse que estava bem, mas que estava com saudade da família e que queria voltar para casa. Isso é muito triste.

Você também traz o seu próprio caso dentro do seu TCC. Poderia falar um pouco sobre isso?

Depois da morte do Miguel, o Ministério Público abriu uma Ação Civil Pública contra Sari e Sérgio pelas condições nas quais eu e minha mãe trabalhávamos [elas tinham hora para iniciar o expediente, mas não tinham hora para encerrá-lo] e também pelo contrato de trabalho, que era fraudulento.

Nós recebíamos pela prefeitura, sendo que nunca prestamos um dia sequer de serviço para a prefeitura. O dinheiro que foi pago foi retirado do Fundeb [o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, principal mecanismo de financiamento da educação básica pública no Brasil].

A ação já foi julgada e a sentença já foi proferida. Eles pagaram uma multa [de R$ 386 mil]. O valor não veio para nós, foi destinado ao Ministério Público do Trabalho, mas foi uma decisão histórica. Espero que tenha servido de exemplo para a sociedade.

Há uma alusão ao caso do Miguel no filme

O Agente Secreto

. Você já assistiu? Se sim, o que achou?

Fiquei sabendo do filme por um cineasta. Ele é de Pernambuco, mas mora no Canadá e, quando foi para o Recife, me procurou para contar sobre o filme. Recebi a notícia com muita surpresa.

Assisti ao filme ontem e confesso que fiquei bastante impactada e emocionada. Passam muitas coisas pela cabeça. Dói, dói muito. Mesmo sabendo de antemão de tudo que aconteceu, vem aquele misto de tristeza e revolta.

Reforço meu agradecimento ao Kleber [Kleber Mendonça Filho, diretor do filme] por trazer essa releitura do caso do Miguel dentro do filme. É uma forma de a história dele não cair no esquecimento.

Que lembranças você guarda do seu filho e o que você acha que ele pensaria de você hoje, prestes a se formar?

A lembrança que eu tenho do Miguel é a voz dele. Tento de todas as formas manter essa lembrança. Tenho um vídeo dele falando, a vozinha dele. É muito bom ouvir a voz do meu filho. Vira e mexe eu assisto ao vídeo, escuto a voz dele, aquela voz serena, gostosa.

Mas uma coisa que eu sinto muita falta mesmo é de sentir o calorzinho do meu filho, o abraço dele, o carinho dele. Sinto muita falta.

Se Miguel estivesse aqui comigo hoje, ele estaria muito orgulhoso de mim e tomaria minha trajetória como exemplo para ele. Certa vez, eu o levei ao dentista e, no caminho, passamos por uma loja de motos. Ele viu uma moto bem bonitona e disse: ‘Mamãe, que moto bonita. Quando eu crescer, vou estudar e comprar essa moto para a gente ir à praia.’

Então meu filho já sabia que precisaria estudar. Com certeza, se estivesse vivo hoje, ele diria: ‘Mamãe, vou estudar e vou ser doutor igual a senhora.’ Eu queria que ele fosse advogado ou médico. Visualizava esse futuro para ele.

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Miguel completaria 11 anos nesta semana [dia 17 de novembro]. Como são essas datas anuais para você?

É muito pesado. Saber que Miguel estaria fazendo aniversário e não vou estar junto com meu filho... Não vou saber com que altura meu filho estaria, qual seria o gosto musical dele, quais roupas ele teria. Simplesmente não vou poder acompanhar o crescimento dele. É muito pesado saber que não vou poder acompanhar nada mais.

Sari vai poder acompanhar o crescimento e o desenvolvimento dos filhos dela. A filha dela faz aniversário agora, também neste mês. Não vou poder fazer nenhuma festa, como ele sempre me pedia.

Sempre vou ao cemitério levar flores. Miguel adorava me dar flores. Na frente da escola dele tinha um pé de papoula. Ele sempre botava uma na mochila e me dava quando chegava em casa. Então eu retribuo levando flores para o meu filho, acendendo vela, orando. É isso. É o que me restou.

Outro lado

O SBT News contatou a defesa de Sari Corte Real para comentar as acusações apresentadas, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto.

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