Vi um milagre no Haiti. Outros vão acontecer na Turquia
Em 2010, viajei pela segunda vez ao Haiti para fazer uma das coberturas mais difíceis da minha carreira
Era janeiro de 2010. Quando deixamos São Paulo, não tínhamos noção de como e quando chegaríamos ao Haiti. Nosso voo era para Santo Domingo, na República Dominicana, com uma escala na cidade do Panamá.
Naquele momento, a única maneira possível de chegar era por terra. Levamos mais de 7 horas de viagem para percorrer pouco mais de 300 quilômetros até a capital Porto Príncipe. Ainda que danificado, o aeroporto da capital haitiana passou a funcionar apenas para voos que traziam equipes de socorro e ajuda humanitária.
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Não dá para comparar a estrutura da Turquia e mesmo a da Síria com a do país mais pobre das Américas, onde mais de 200 mil pessoas morreram naqueles dias. Mas em se tratando de um terremoto, não é difícil imaginar como serão os próximos dias. A partir de agora, a luta é para encontrar milhares de pessoas que ainda estão vivas sob os escombros.
Mesmo comparada aos 4 conflitos armados que já presenciei, a cobertura da tragédia do Haiti foi uma das mais difíceis que fiz - tão ou mais difícil do que uma guerra. Terremotos como o de 2010 e o de agora são como bombas atômicas sem radiação.
Mais intensa do que a morte, é a sobrevivência. No meio do caos, eu e o repórter cinematográfico Claudenir Puga presenciamos um milagre. Duas irmãs foram resgatadas dos escombros após cinco dias do terremoto. Conseguiram sobreviver bebendo a água suja que escorria no que restou do prédio onde estavam.
Conseguiram apesar das muitas réplicas que aconteceram após o tremor principal. Sentimos várias delas quando trabalhávamos e mesmo quando tentávamos dormir, numa barraca na base do Exército brasileiro em Porto Príncipe.
Em uma das muitas noites em que abrimos mão do sono, acompanhamos o trabalho de um grupo de Bombeiros dos Estados Unidos. Havia um silêncio ensurdecedor, interrompido apenas pelo som do trabalho insistente daqueles profissionais. Era preciso evitar os ruídos para conseguir ouvir qualquer sopro de vida que viesse das profundezas das toneladas de cimento e ferro. Um dos desses sopros era de Josefine.
Nunca mais me esquecerei da feição dela, quando foi retirada, quase quando o sol estava raiando. Ela teve força para andar até a ambulância e para ajeitar um lençol que a deram para cobrir a roupa rasgada, como se quisesse manter a dignidade num momento em que quase perdeu a vida.
Guardo essa foto que fiz naquele momento como um exemplo de força e vida. Essa imagem me ajuda a equilibrar as lembranças trágicas que tenho daquele país, onde conheci o cheiro da morte, que varria as ruas da cidade e fazia arder os olhos.
Havia cadáveres e pedaços de cadáveres por todos os lados. Havia filhos tentando enterrar os pais na frente de casa. Havia pais com pedaços dos filhos no colo. Nunca tive um contato tão forte com a morte. Com o pior da morte.
Outras Josefines virão. Os próximos dias serão essenciais para que os milhares de pessoas que neste momento estão enterradas vivas sejam retiradas dos escombros. Para elas, a ampulheta da vida se esvazia muito mais rapidamente que o normal.
Sigo agora para Turquia sabendo que milhares vão depender do tempo e da sorte para sobreviver e com a certeza de que um terremoto não acaba quando a terra não treme mais. Essa tragédia será sentida por anos e nem todos os sírios e turcos serão tão fortes quanto aquela haitiana.