Uma Copa sem amor, mas com rebeldia
Apesar da Fifa e do governo do Catar, Mundial começa com forte apelo a causas humanitárias
Sérgio Utsch
Começou! Pela primeira vez na história das Copas, os donos da casa perderam a partida de abertura. No caso do Catar, nem o ataque extracampo, o governo tem conseguido segurar. O Mundial de 2022 já mostrou que não é apenas sobre futebol. Nem a Fifa, nem o governo do país conseguiram conter a rebeldia que brota dos gramados e ecoa nas arquibancadas. Este texto é pra você que ainda está um pouco incomodado com o Catar e com tudo o que aconteceu e acontece às margens deste Mundial.
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Há 12 anos, a Fifa anunciou de uma só vez os países que sediariam as Copas de 2018 e 2022. Muitos não entenderam como Rússia e Catar bateram os favoritos Inglaterra e Estados Unidos, que já tinham uma infraestrutura mais consolidada e mais tradição no futebol que os concorrentes.
Se o futebol é pra todo mundo, a escolha fez sentido. Nunca uma Copa havia sido realizada na Rússia ou no Oriente Médio. O que pode anular essa lógica são as denúncias de que os cataris subornaram dirigentes da Fifa e usaram contratos comerciais com outros países pra conseguir os votos necessários.
Bem-vindos ao mundo das contradições e aos vários tons de cinza dessa vida que muitos insistem em enxergar como preta e branca ou como um enredo de mocinho e bandido. Nem nas novelas isso tem funcionado mais. As próximas linhas são como os versos de Tom Zé. Não vão te dar uma resposta pronta e podem mais confundir do que explicar.
E se não fosse a Copa?
Uma das principais críticas feitas ao Catar é a maneira como o país tratou os milhares de trabalhadores estrangeiros de países pobres que vieram construir a gigantesca infraestrutura da Copa. Investigação do jornal britânico The Guardian revelou que 6.500 morreram nas obras. Boa parte, diz o jornal, foi vítima de exaustão e longas horas de exposição ao calor que, no verão, chega a quase 50 graus.
O Catar sempre negou esses dados. O governo afirma que o número de mortos em obras da Copa não chegou a 40. As mortes são a ponta o iceberg de um mercado que historicamente explora trabalhadores e que, graças à pressão internacional, foi obrigado a começar a respeitar algumas regras.
Recentemente, o governo mudou a lei que impedia que os operários mudassem de emprego antes de 2 anos caso não estivessem satisfeitos com seus patrões. Há menos de 3 anos, os cataris também implementaram uma espécie de salário mínimo, equivalente a 1.500 Reais. É muito pouco para um país com preços similares aos da Europa. Ainda é ruim, mas era pior.
Organizações como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch pedem que o governo do Catar e a Fifa paguem uma compensação para as famílias dos trabalhadores que morreram e para aqueles que se feriram ou não receberam tudo o que lhes era devido. Também conseguiram impor restrições ao sistema de agenciamento, em que imigrantes pagavam pra conseguir uma vaga e, não raramente, ficavam meses trabalhando pra quitar essa dívida.
Tanto a Anistia quanto a Human Rights Watch não pregam o boicote à Copa. Acham que o Esporte deve ser preservado e que pode ajudar a dar visibilidade a esses problemas. Foi assim no Mundial de 1978 na Argentina. Nas margens do futebol, a imprensa estrangeira expôs ao mundo algumas das muitas barbaridades da ditadura militar.
Figura imponente nas tribunas de autoridades dos estádios, o então ditador general Videla estaria na cadeia menos de 10 anos depois, cumprindo pena por crimes contra a humanidade. A Copa de 78 ajudou a virar o jogo contra os ditadores e sem a de 2022, a situação dos trabalhadores do Catar poderia ser condenada ao esquecimento. E aí? Vai fechar os olhos?
E as mulheres?
O Catar é um país islâmico e conservador. E como em muitos países de religião muçulmana, mulheres precisam de autorização dos homens pra tomar algumas decisões sobre as próprias vidas, como trabalho, estudos, casamento e até pra ter acesso a métodos contraceptivos. Isso pode ser uma mera formalidade ou uma necessidade de fato. Depende muito da família e de quão conservadora ela é.
Medir a cultura alheia com a nossa régua é um erro que pode levar a vários equívocos. Prepare-se pra entender que algumas mulheres preferem não mostrar o rosto e não conversar com outros homens que não sejam os da própria família, assim como também é verdade que muitas queriam ter uma vida mais livre e não tem por conta da cultura de medo, e do rígido e arcaico sistema de tutela masculina adotado pelo Catar e denunciado por organizações internacionais de direitos humanos.
A Copa do Mundo foi a primeira oportunidade que as mulheres deste país tiveram de frequentar um estádio. Ainda que sejam poucas em comparação aos homens, já foi um avanço. Além disso, quanto mais a endinheirada elite do país viaja e manda os filhos pra estudar em outros países, maior o contato deles com uma outra perspectiva de vida e mais aberto o país vai se tornando. A Copa, talvez, acelere um pouco esse processo histórico e lento de mudanças.
Já aconteceu com o Brasil. Na década de 1980, a TV brasileira exibia entrevistas em que pessoas defendiam o assassinato de homossexuais. No compasso da história, é como se fosse ontem o tempo em que as pessoas se sentiam à vontade pra expressar tamanha crueldade. Eliminamos essa barbaridade? Não. Melhoramos como sociedade? Sim, apesar dos necessários pesares.
E o futebol?
Se você é daqueles que acha que futebol e política não se misturam, prepare-se pra uma Copa cheia de rebeldias. Nesta segunda, Inglaterra e Irã já deram um gostinho do que pode ser esse Mundial. Os ingleses se ajoelharam em campo num gesto que vem fazendo desde o assassinato de George Floyd pela polícia dos Estados Unidos.
Os iranianos ficaram em silêncio durante o hino do país. Foi um grito silencioso de solidariedade aos manifestantes, que vem sendo violentamente oprimidos pelo regime. Os protestos começaram depois da morte de Masha Amini, de 22 anos. Ela tinha sido presa pela 'polícia da moralidade' por usar o véu de forma errada.
Iranianos e ingleses não são os únicos que furaram a retranca dos boleiros puristas. Alemães deram visibilidade à campanha de organizações internacionais pra que haja uma compensação financeira às famílias dos trabalhadores que morreram e àqueles que foram explorados durante a construção da infraestrutura do Mundial.
Ingleses e estadunidenses já tinham convidado alguns operários para um bate-bola, num claro gesto de apoio. Dinamarqueses vão entrar em campo com camisas especialmente confeccionadas pra dar menos destaque ao brasão da equipe. A idéia é "não ficar visível durante um torneio que custou a vida de milhares de pessoas".
E quem são europeus e norte-americanos pra dar lição de moral ao resto do mundo? Pois é. O mundo não é preto e branco, meus caros. A história está cheia desses capítulos irônicos. E na história de 2022, a Fifa será descrita como aquela que proibiu o amor.
A palavra está na braçadeira que capitães de algumas seleções usariam neste mundial. Junto à palavra, estão as cores do arco-íris, uma referência ao movimento LGBTQIA+. Este é um assunto que incomoda muito o Catar e outros países islâmicos, que criminalizam a homossexualidade, definida como "dano mental" por Khalid Salman, Embaixador catari para a Copa do Mundo.
Na cerimônia de abertura, o ator Morgan Freeman reverberava em nome do comitê organizador da Copa uma mensagem sobre inclusão. No compasso histórico e moral do país do Mundial este avanço é tão fraco quanto a seleção catari. É um avanço que carece de amor, aquele sentimento ora preto, ora branco, ora vários tons de cinza que a Copa ousou proibir.
PS 1 - E uma observação sobre as mulheres. Nas ruas de Doha, ouvi brasileiros fazerem referência às "burcas" que as cataris usam, o que é um erro. O mais conservador dos trajes femininos islâmicos é usado tradicionalmente pelas mulheres Pashtun, no Paquistão e Afeganistão. No Golfo Pérsico, as locais costumam usar vestidos pretos longos de mangas compridas, chamado Abaya. Algumas ainda usam Niqab, que cobre parte do rosto, deixando apenas olhos de fora.
PS 2 - Fizemos um programa especial pra explicar o que é o Catar e quais são as acusações que o país enfrenta. De Doha, nós entrevistamos especialistas nos Estados Unidos e no Brasil sobre os assuntos mais não boleiros dessa Copa. Segue o vídeo abaixo: