Decretos de armas: especialista vê tentativa de esvaziar julgamento
Pedido de vista de Nunes Marques consegue esquivar decretos da apreciação no STF, diz Felippe Angeli
Fernanda Bastos
Uma das principais bandeiras do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é a política armamentista, que deve ser usada como proposta para tentativa de reeleição durante a campanha das eleições de 2022. Nos quase três anos de mandato do chefe do Executivo, foram mais de 30 atos com o objetivo de flexibilizar e ampliar o acesso às armas e munições, que liberou, segundo levantamento do SBT News, um arsenal de 46 mil equipamentos pesados.
Saiba mais:
+ Leia as últimas notícias no portal SBT News
Em contrapartida, o Supremo Tribunal Federal (STF) busca questionar a diminuição da rigidez na regulação da compra, da posse, do registro e da tributação sobre armas e munições. Nesta 6ª feira (17.set), estava pautado o julgamento no Plenário Virtual da Corte sobre a constitucionalidade de 11 atos, entre decretos, portarias e resoluções, que tratam da flexibilização do acesso às armas. O pacote de ações em julgamento analisa mudanças no rastreamento e marcação de armas e de munições, mudança de definição de armas de uso restrito, como fuzis, além da ampliação da validade do registro de armas de fogo de cinco para dez anos.
+ EXCLUSIVO: decreto de Bolsonaro liberou 45 mil armas pesadas em 26 meses
O que está em jogo na Corte, segundo Felippe Angeli, advogado e coordenador de Advocacy do Instituto Sou da Paz, são dois pontos: a questão da interferência do presidente Bolsonaro no Poder Legislativo, que chega a extrapolar o poder regulamentar por meio da alteração de leis por decretos, e a falta de embasamento e justificativa para a definição das mudanças e atos.
"Parte desses decretos trata dessa questão de competência extremamente grave, com o presidente legislando por meio de decreto, o que só poderia ser feito no próprio Congresso, pelos parlamentares. Naquilo que em tese também seria de sua competência, ainda sim, é irregular. Não existe a vontade do príncipe na República, mesmo que haja a competência do presidente para regulamentar, ele tem que justificar isso no interesse público, tem que demonstrar motivação do ato, tem que comprovar e observar as formalidades necessárias à publicação deste ato administrativo, ouvir os setores envolvidos, saber dos efeitos que essas alterações políticas vão trazer", ressalta o especialista.
Segundo Felippe, o que é perceptível na publicação dos decretos é que não há nenhuma justificativa, sendo que o presidente precisa embasar o interesse público que é soberano a qualquer decisão administrativa. "O que a gente vê nesses atos todos é que não há nada, vêm de uma hora pra outra. Muitas vezes a Polícia Federal tem pareceres técnicos alertando que a norma não é boa ou a proposta não é interessante que são ignorados. A autoridade pública não pode decidir da sua cabeça 'ah, eu quero, acho legal, acho bonito', isso não existe no Estado Democrático de Direito", diz.
No entanto, um fator impediu a realização do julgamento no STF: o pedido de vista -- concessão de mais tempo para análise dos textos e documentos do julgamento -- do ministro Nunes Marques, realizado na madrugada desta 6ª feira (17.set). O magistrado foi indicado ao cargo por Bolsonaro em 2 de outubro de 2020, no lugar de Celso de Mello, que se aposentou em 13 de outubro.
A suspensão do julgamento foi realizada após voto do ministro Alexandre de Moraes favorável à derrubada de dispositivos que ampliam o acesso às armas. Ele acompanhou os votos dos relatores, o ministro Edson Fachin e a ministra Rosa Weber, em 12 ações. Em nota, os institutos Igarapé e Sou da Paz avaliam que os votos de Moraes são passos importantes para barrar retrocessos na política de controle de armas e munições no país, no entanto, "a nova interrupção do julgamento coloca a segurança e a democracia em risco".
Além da suspensão do julgamento, um outro ponto foi levantado por Felippe. Três novas portarias foram editadas pelo Exército sobre a questão de rastreamento e marcação de armas e munições na última 4ª feira (15.set), dois dias antes do julgamento no STF e foram publicadas um dia depois (16.set). Na mesma data (16.set), o ministro do Supremo Alexandre de Moraes suspendeu a portaria do governo que dificultava rastreio de armas com a justificativa de que há dificuldade no controle sobre material bélico e favorecimento da criminalidade organizada.
Para Felippe, as portarias editadas pelo Exército não são apenas coincidências. "Na véspera do julgamento foram publicadas três novas portarias. É preciso investigar se houve uma tentativa de fraude de jurisdição e uma tentativa de esvaziar o julgamento", pontua.
O coordenador de Advocacy do Instituto Sou da Paz alerta para a ideia de que não é apenas por questão de ideologia que há a política de liberação das armas, mas por conta de uma indústria que lucra bilhões por ano. "Falamos de um mercado bilionário, a indústria de armas de fogo representa um comércio importante. Não se trata de ideologia, muito é sobre direita e esquerda, liberal e conservador, mas nesse caso é muita gente ganhando dinheiro em relação a essas armas. A gente tá falando de gente que tá ganhando muito dinheiro, interesses não são aleatórios, não é uma coincidência. Gente ganhando dinheiro com a morte dos outros", conclui.