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Governo

Fila de cirurgias e mortalidade materna serão desafios do governo Lula na saúde

Diretor do Ieps acrescenta que nova gestão precisa incentivar mais a campanha de vacinação também

Imagem da noticia Fila de cirurgias e mortalidade materna serão desafios do governo Lula na saúde
Folha de papel colada em parede em unidade de saúde traz o símbolo do SUS (Marcello Casal/Agência Brasil)
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Uma das áreas que mais requereu atenção do governo Jair Bolsonaro (PL) -- devido às dificuldades impostas pela pandemia de covid-19, maior crise sanitária do século XXI --, a saúde, segundo especialistas, trará vários desafios à gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que se iniciará em 1º de janeiro de 2023.

Dentre os problemas a serem mitigados pelo novo governo, parte são situações que podem e devem ser reduzidas no curto prazo, enquanto outra se inclui em uma agenda "mais de longo prazo", de como fortalecer e expandir a qualidade do SUS por meio de reformas estruturantes, conforme o diretor de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), Arthur Aguillar.

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"No curto prazo, a gente tem acho que sobretudo quatro coisas. A primeira são os desabastecimentos na parte de medicamentos, um problema em Farmácia Popular, que nos preocupam muito e podem afetar na ponta o manejo de condições como HIV, hipertensão e outras", fala o porta-voz da organização não governamental que visa a aprimorar as políticas públicas para a saúde no Brasil.

"A segunda, os alto índices de mortalidade materna, que subiu mais de 70% nos últimos três anos durante a pandemia. Terceiro, a gente tem também por conta da pandemia um amplo represamento de serviços de saúde, de tratamentos e coisas assim que não foram feitos durante essa época e que precisam ser feitos agora. Então a gente tem uma fila muito grande precisando de tratamento, de cirurgia, entre outros procedimentos que se a gente não fizer agora, vão sair muito mais caros com a deterioração da saúde dessa população", complementa.

Um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apontou para o aumento de 70% no número de mortes maternas durante os primeiros 15 meses da pandemia de covid-19. Segundo os dados, no período, houve 3.291 mortes de mães no Brasil, sendo 1.353 óbitos além do esperado. Outro levantamento da fundação identificou que brasileiros que precisam realizar procedimentos cirúrgicos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) estão em uma longa fila de espera. Há mais de um milhão de pessoas aguardando serem chamadas.

Em relação aos problemas que levarão mais tempo para serem corrigidos, Aguillar destaca três. "Primeiro, não dá para fazer nada disso que a gente está falando sem mais recursos. O último PLOA [Projeto de Lei Orçamentária Anual] mostrou um orçamento do SUS que é o menor federal em dez anos. E isso, enfim, gerará cortes em programas como o de HIV/Aids, saúde indígena e muitos outros. Então, sem essa recomposição orçamentária não tem muito o que fazer, não dá para resolver nenhum dos problemas que eu trouxe aqui", pontua. O segundo problema é como expandir a quantidade e a qualidade da Estratégia Saúde da Família (ESF) no país. "Hoje a gente tem cerca de um terço da população que não está coberta. E a terceira reforma fundamental é a regionalização da saúde, que é uma reorganização da governança que acontece entre estados e municípios para prover saúde de uma maneira mais integrada", afirma o diretor de políticas públicas do Ieps.

De acordo com Aguillar também, "sem dúvida" um incentivo maior à campanha de vacinação "é muito urgente". "A gente observou e vem observando desde 2018/2019, uma queda importante na cobertura vacinal de todas as principais imunizações que estão no Plano Nacional [PNI], coisas como pólio e outras. E acho que eu incluiria nessa conta também a própria vacinação da covid, que a gente em 2022 está chegando em um nível muito atrás do que a gente vacinou em 2021, então a gente também precisa voltar a investir nisso porque a covid pelo jeito veio para ficar, então é importante a nossa população estar devidamente protegida contra essa condição", acrescenta. Duas em cada três crianças no Brasil ainda não tomaram as vacinas necessárias até os dois anos de idade. A Fiocruz, que fez o levantamento, aponta para o risco de surtos de doenças que os imunizantes já haviam controlado no passado, como a poliomielite (paralisia infantil) e o sarampo. 

Lula não definiu o nome do ministro ou ministra da Saúde do seu governo. Aguillar cita as características que o Ieps considera essenciais para quem estiver à frente da pasta: possuir uma visão de saúde pública e saúde coletiva; e conseguir coordenar capacidades políticas com capacidade de gestão. "Esse novo ministro vai ter desafios políticos importantes, como a recomposição orçamentária do ministério, como o desafio de orientar as emendas parlamentares que hoje respondem por uma parte muito importante do orçamento federal de saúde, então ele vai ter que ser um ministro hábil para negociar tanto com a oposição quanto até dentro do novo governo que a saúde seja priorizada. E competência de gestão para priorizar não só medidas reativas nas emergências, mas também olhar para frente, olhar para o futuro, olhar para as reformas que o SUS precisa, como a expansão de estratégia da saúde da família e a regionalização, por exemplo", justifica.

O professor da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) Camilo Darsie de Souza, que integra o Grupo de Estudos em Promoção da Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Geps/UFGRS), por sua vez, lista três: adesão aos conhecimentos da ciência, possuir entendimento amplo sobre o que significa o sistema público de saúde brasileiro enquanto política pública democrática e considerar "que o Brasil é um país de desigualdades sociais e que o sistema público de saúde dá conta de 70% da população". "Que não tem outros recursos, depende exclusivamente do SUS. Então na minha opinião é isso, uma pessoa que tenha um perfil crítico, um perfil responsável democrático e com aderência à ciência".

Darsie de Souza analisa que entre os principais desafios que o governo Lula encontrará na área da saúde quando começar, estão o financiamento de ações, pois o teto de gastos limita movimentações necessárias à realização de "investimentos fundamentais" por parte do Executivo para fazer o sistema público de saúde continuar funcionando e funcionar cada vez melhor; e a qualificação do trabalho do sistema público, pois este "não opera apenas com o tratamento ou controle de doença, ele precisa ter investimentos também direcionados da promoção da saúde para se diminuir o número de casos de demandas, de atendimento para tratamentos. E essas questões acabam ficando muitas vezes em segundo plano, em função das grandes demandas de atendimento relacionados a doença".

"E outro desafio que eu penso ele é mais amplo que o SUS propriamente dito. Seria uma lógica de reativação de políticas públicas que complementam o SUS, que são aquelas ligadas a empregabilidade, a renda, a assistência social, a educação, enfim, e que promovem melhores índices de qualidade de vida e consequentemente desafogam, digamos assim, ou desafogariam o sistema público de saúde. Então acho que esses três pontos vão precisar ser atentados com bastante energia a partir do próximo ano", acrescenta.

Governo Bolsonaro

O Instituto de Estudos para Políticas de Saúde, de uma forma geral, vê como "bem preocupante" o desempenho da área no governo Bolsonaro, segundo Aguillar. As razões são várias. Entre elas, o "manejo da pandemia" pelo Executivo no período. "A gente teve um governo claramente anticiência, antivacina, que fez de tudo para atrapalhar o manejo da pandemia na saúde, inclusive demitindo ministros que tinham um olhar mais programático. Então o governo jogou contra na média", afirma o especialista.

Outras razões são a estagnação do orçamento do SUS no período e pouco avanço no solucionamento de "desafios importantes", como a fixação de médicos. "A gente teve o lançamento do programa Médicos pelo Brasil, substituto do Mais Médicos, mas que na parte não chegou nem a 10%, 20% da quantidade de profissionais do Mais Médicos. Então, assim, independentemente de tudo, a gente avalia de uma forma muito negativa a gestão da saúde no governo Bolsonaro".

Por outro lado, diz, o Programa Previne Brasil -- instituído pela Portaria nº 2.979, de 12 de novembro de 2019 -- "foi importante para aumentar a produção ambulatorial da atenção primária no Brasil, de pré-natal, desse tipo de coisa, e aumentar também o cadastramento, a quantidade de pessoas cadastradas em Estratégia Saúde da Família". "Talvez uma outra coisa que tenha avançado um pouco é a agenda de transformação digital. A gente vê o ConecteSUS como uma coisa muito positiva. Se hoje centenas de milhões tem acesso à sua carteira de vacinação da covid ao menos no celular, isso é uma coisa que aconteceu nos últimos anos e que deve impulsionar uma nova onda ainda mais ansiosa de transformação digital na saúde", completa.

O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia, do Senado Federal, aprovado no ano passado, pede o indiciamento de Bolsonaro por nove crimes, entre os quais epidemia com resultado morte, infração de medida sanitária preventiva, charlatanismo, incitação ao crime, falsificação de documento particular, emprego irregular de verbas públicas e prevaricação. O presidente teve uma série de posturas polêmicas na crise sanitária, como participar de aglomerações; incentivar o uso de medicamento com ineficácia comprovada contra covid-19, para tratar a doença; desestimular o uso de máscara de proteção; criticar o isolamento social; e colocar dúvida sobre a segurança da vacina CoronaVac.

A CPI, em seu relatório, também pede o indiciamento de quatro ministros (no momento de sua aprovação): Marcelo Queiroga (Saúde) -- epidemia com resultado morte e prevaricação; Onyx Lorenzoni (Trabalho e Previdência) -- incitação ao crime e crimes contra a humanidade nas modalidades extermínio, perseguição e outros atos desumanos --; Wagner Rosário (Controladoria-Geral da União) -- prevaricação; e Braga Netto (Defesa) - epidemia com resultado morte. Foram alvo também da comissão ex-ministros, como Eduardo Pazuello (Saúde) -- epidemia com resultado morte, entre outros -- e Ernesto Araújo (Relações Exteriores) -- epidemia com resultado morte e incitação ao crime --, e parlamentares bolsonaristas, como as deputadas Bia Kicis e Carla Zambelli - ambas, incitação ao crime.

Os três filhos do presidente também aparecem nos pedidos de indiciamento. O senador Flávio Bolsonaro, o deputado Eduardo Bolsonaro e o vereador do Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro (Republicanos) são acusados de incitação ao crime por divulgação de notícias falsas. Segundo o relatório, eles liderariam uma rede de disseminação de fake news referentes ao coronavírus.

O professor Camilo Darsie de Souza avalia que, na área da saúde, o atual governo "foi problemático especialmente no que diz respeito a investimento no sistema de saúde". "Nós tivemos ali um aumento de investimento emergenciais durante a pandemia, no ano de 2020/2021, mas o que se viu em 2022 foi uma diminuição muito grande do orçamento, foi a desativação de políticas públicas que são fundamentais, como a Farmácia Popular e a própria questão de educação em saúde, que vai envolver a imunização, vai envolver prevenção de doenças, diferentes aspectos da vida, e para 2023 o orçamento é menor do que o de 2022". Bolsonaro trocou o ministro da pasta atualmente chefiada por Queiroga três vezes: de Luiz Henrique Mandetta para Nelson Teich, de Teich para Eduardo Pazuello e Pazuello para Queiroga.

Diálogo

Tanto o diretor de políticas públicas do Ieps como o integrante do Geps dizem ser importante que o novo governo dialoque regularmente com as entidades e associações da área da saúde para desempenhar um bom trabalho nesta. "Sem dúvida é fundamental. A saúde tem um tecido social muito importante. A gente tem a participação popular que acontece por via do Conselho Nacional de Saúde, dos conselhos estaduais e municipais, que foi muito negligenciada no governo Bolsonaro e precisa voltar a contribuir. A gente tem uma série de movimentos importantes, as associações de pacientes, as entidades de classe, o setor privado, claro, o complexo industrial da saúde, a rede hospitalar, e para você conseguir chegar em saídas boas, vocês precisa conseguir conversar com todos esses atores e garantir que eles andem coordenados, com cada um fazendo o que faz de melhor, para a gente não ter retrabalho", fala Arthur Aguillar.

Camilo Darsie de Souza ressalta que um dos princípios do sistema público de saúde é "que haja diálogo, que haja gestão democrática em diferentes níveis, tanto nacional ou estadual quanto o municipal". "Uma das diretrizes, um dos princípios norteadores do SUS diz respeito a controle social, que é a emergência das demandas da população, mas também nesse contexto de gestores, de instituições privadas, que muitas vezes colaboram, o trabalho em parceria com o sistema público. Então esse tipo de negociação vai ser fundamental num primeiro momento para fazer um bom direcionamento de metas, do que é emergencial, logo de início, e, num segundo momento, para conseguir inflar de algum modo a capacidade de financiamento e de trabalho do sistema público", conclui.

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