Itamaraty bancou palestras sobre covid com investigados por fake news
Entre os contratados por fundação vinculada ao ministério estão os jornalistas Allan dos Santos e Bernardo Kuster
A Fundação Alexandre Gusmão (Funag), vinculada ao Ministério das Relações Exteriores, financiou palestras sobre a crise da covid-19 com pessoas investigadas no Inquérito das Fake News, que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF). Em 2020, os jornalistas Allan dos Santos e Bernardo Kuster, dos portais Terça Livre e Brasil Sem Medo, respectivamente, foram alguns dos oradores do evento, promovido durante a gestão do ex-ministro do Itamaraty Ernesto Araújo, integrante da ala ideológica do governo.
Em documento entregue à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia e obtido pelo SBT News, o MRE informou que os gastos com as conferências foram de R$151.465 em 2020, referentes a quatro eventos presenciais e 36 virtuais. Já em 2021, a pasta desembolsou R$17.632 para a realização das palestras on-line. No total, os custos foram de R$169.097.
Na tabela compartilhada pelo ministério, há o custo individual dos seminários: R$ 839,65. Já o seminários presenciais, por exemplo, variaram entre R$ 2,4 mil (o mais barato) e R$ 79,3 mil (o mais caro). Os recursos foram destinados à logística, locomação, tradução e intérprete de libras, com participantes internacionais, como embaixadores e representantes da sociedade civil.
Ainda segundo o ofício, também foram convidados como palestrantes em seminários sobre a pandemia, nomes apontados pelo colegiado que teriam ligação com o suposto gabinete paralelo no Palácio do Planalto: o ex-assessor da Presidência Arthur Weintraub e o assessor especial de assuntos internacionais, Filipe Martins. O grupo orientaria o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sobre medidas de combate à covid, à margem de evidências científicas.
Defensores da cloroquina
Na lista de oradores convidados para falar sobre os impactos da crise sanitária, só há dois nomes ligados à saúde: o médico olavista, Hélio Angotti Neto, à época diretor do Departamento de Gestão da Educação na Saúde do Ministério da Saúde e, atualmente, secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos; e o biólogo Marcelo Hermes Lima, professor da Universidade de Brasília (UnB) e diretor-presidente da Associação Docentes pela Liberdade, um defensor da cloroquina - remédio sem eficácia comprovada para o tratamento de covid.
Outros participantes das palestras foram os deputados Chris Tonietto (PSL-RJ) e Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do chefe do Executivo. Atualmente, a Funag é comandada pelo ministro Roberto Goidanich, um entusiasta do ideólogo Olavo de Carvalho. Desde que assumiu o comando da fundação, o teor dos eventos é alinhado com o pensamento conservador e de direita, defendido pelo guru bolsonarista.
Kuster e Santos participaram do mesmo seminário "A conjuntura internacional no pós-coronavírus", mas em diferentes dias: em 19 e em 26 de maio de 2020, respectivamente. No mesmo dia de evento do jornalista do Brasil Sem Medo, participou também o blogueiro bolsonarista Flavio Morgenstern, condenado na Justiça por criar a hashtag #Caetanopedofilo, contra o cantor.
Weintraub e Martins também foram oradores da mesma palestra, mas em outras edições. O primeiro, em 2 de junho; e o segundo, no dia 23 do mesmo mês. O ministério incluiu, no hall de especialidades dos convidados, a função de "professor", além dos cargos que ocupavam no governo. O ofício explicou que a escolha dos palestrantes se deu "pela avaliação da Funag sobre a atuação específica ou de conhecimento particular" dos convidados.
Segundo o ofício, assinado pelo atual chanceler Carlos Alberto Franco França, o objetivo dos encontros era "discutir a situação internacional após o início da pandemia" e reforçou que "os convidados tiveram liberdade de expressão para que abordassem o tema da perspectiva que lhes parecesse mais adequada".
Outro lado
Procurado, Bernardo Kuster confirma a participação no evento. "Sim, participei do evento. Há vídeos que provam isto. O convite partiu da assessoria do sr. Roberto Goidanich, da Funag, e não recebi pagamento ou cachê; o próprio Roberto ressalta isto no início das palestras. O então chanceler Ernesto Araújo, que muito estimo, não tratou pessoalmente nada comigo. Fui um dos convidados, julgo eu, porque meu conhecimento, perspectiva e alcance foram considerados relevantes para as questões levantadas à época pela Funag sobre pandemia e geopolítica", afirmou.
O Itamaraty disse que "a Funag, como fundação pública vinculada ao Itamaraty, define os temas e os participantes de seus eventos conforme o potencial interesse e relevância para a sociedade brasileira, de acordo com os objetivos gerais previstos no art. 1º da Lei no. 5717, de 26 de outubro de 1971". "Os palestrantes convidados a participar dos seminários virtuais da Funag têm liberdade para expressar suas opiniões e, conforme esclarecido pelo presidente da Funag durante vários dos eventos virtuais, os posicionamentos dos palestrantes não refletem necessariamente as posições do Ministério das Relações Exteriores ou da Fundação Alexandre de Gusmão. Ressalta-se, igualmente, que nenhum dos mais de 400 participantes dos eventos da Funag recebeu qualquer tipo de pagamento na atual gestão da Fundação", acrescentou a pasta.
Já Allan dos Santos foi contactado três vezes por telefone, mas não respondeu à reportagem. O espaço para manifestação segue aberto.