Casal é condenado por manter empregada doméstica em condições análogas à escravidão por 30 anos
Condenação de 2 anos será cumprida em regime aberto, com pagamento de multa
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Kaê Carneiro
Um casal foi condenado pela Justiça Federal a dois anos de prisão por manter uma empregada doméstica, por mais de 30 anos, em condições análogas à escravidão. A mulher foi contratada em outubro de 1991 para trabalhar na casa dos patrões, na cidade de São Paulo. A pena será cumprida inicialmente, em regime aberto, e pagamento de dez dias-multa cada um.
A Quinta Turma do TRF-3 substituiu a pena pelo pagamento de dois salários mínimos em favor de uma entidade beneficente e prestação de serviço à comunidade ou entidade pública.
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Abrigada em um albergue, no Centro de São Paulo, no qual pessoas eram encaminhadas para vagas de emprego, a mulher, com cerca de 40 anos, foi selecionada por Maria Sidronia, ou Cida, como era conhecida, para trabalhar na casa dela.
Cida vivia com o marido, José Enildo, e dois filhos. Contratada como empregada doméstica, a nova funcionária receberia um salário-mínimo pelos serviços, promessa que só foi cumprida no primeiro mês de trabalho.
Depois do primeiro pagamento, Cida alegou que a empregada teria quebrado a máquina de lavar, motivo pelo qual não pagou pelos seguintes serviços. A partir daí, a subordinada passou a fazer todos os serviços da casa, recebendo em troca somente comida, moradia e alguns trocados, que usava para comprar biscoitos e cigarros.
Agressões, restrição de liberdade e racismo
As declarações foram dadas em depoimento à Justiça do Trabalho. A vítima acordava por volta das 06h da manhã para começar o trabalho. Ela só podia ir dormir depois das 22h, quando servia o jantar para José Enildo.
Ainda segundo a vítima, a rotina relatada era acompanhada de constantes xingamentos e humilhações, inclusive injúrias relacionadas à sua cor. Além de sempre ser chamada de “negra”, ela contou que chegou a ouvir algumas vezes a patroa dizer que “na terra dela, pessoas da cor da empregada não sobreviviam”.
Certa vez, durante uma briga, José deu tapas e empurrões na empregada, e a prendeu dentro de uma lavanderia. Depois de alguns minutos, Cida abriu a porta e mandou ela voltar ao serviço.
Busca por ajuda
Por meio de uma denúncia anônima, em 2014, foi feito um Termo de Ajustamento de Conduta entre os patrões e o Ministério Público do Trabalho. No documento, José Enildo e Cida se comprometeram a regularizar o registro da funcionária, oferecendo salário e os demais benefícios previstos por lei.
Apesar disso, a situação continuou a mesma. Posteriormente, José foi questionado pela Justiça sobre o não cumprimento do termo, e justificou dizendo que “esqueceu” do acordo firmado com o MPT.
A continuação dos maus tratos levou a mulher a procurar ajuda no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) do bairro da Mooca. No CREAS, ela recebeu atendimento e acompanhamento. Chegou a receber visitas domiciliares de vistoria, para que as condições de trabalho fossem avaliadas.
O caso chega à Justiça
Inicialmente, a denúncia do Ministério Público Federal levou o caso à Justiça do Trabalho, que, em decisão final, determinou que a vítima fosse resgatada da casa de Cida e José Enildo, o que aconteceu em julho de 2022.
Já a 9ª Vara Criminal de São Paulo absolveu o casal por falta de provas. O MPF recorreu à Justiça Federal, e o caso chegou ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
A relatoria do tribunal entendeu que a denúncia não se trata de “mera irregularidade de vínculo empregatício”, mas sim de práticas escravagistas, conforme o trecho final do magistrado.
“Apesar do acordo para regularização da situação trabalhista, os acusados continuaram submetendo a empregada ao trabalho doméstico sem remuneração, exercido em troca de alimentação e moradia, sem férias e folgas aos finais de semana e com jornada exaustiva e agressões físicas e verbais, o que configura redução a condição análoga à de escravo”.
* Com supervisão de Lucas Cyrino