10 anos da Boate Kiss: o que mudou na legislação de prevenção contra incêndio?
Tragédia, que fez 242 vítimas, levou à criação da primeira lei nacional focada no tema
Maria Eduarda Petek
Em 27 de janeiro de 2013, a Boate Kiss, na cidade de Santa Maria, região central do Rio Grande do Sul, apresentava a banda Gurizada Fandangueira para um público de quase 900 pessoas. Os frequentadores eram em sua maioria jovens universitários. Em um momento da apresentação, o vocalista acendeu um artefato pirotécnico e acabou atingindo uma espuma que revestia o teto, instalada com objetivo de abafar o som das festas. Assim, iniciou o incêndio que causou a morte de 242 pessoas.
A tragédia deixou marcas e provocou mudanças na legislação para que uma situação semelhante não se repita. A primeira lei nacional voltada para a prevenção de incêndio, a Lei 1.3425/2017, conhecida como Lei Kiss, foi sancionada pelo então presidente Michel Temer em 2017, e propõe a unificação das regras para estados e municípios, definindo competências e responsabilidades. Busca também aumentar a fiscalização, segurança e prevenção de incêndios em estabelecimentos que reúnam 100 pessoas ou mais.
Para o diretor do Sindicato dos Engenheiros do Rio Grande do Sul, João Leal Vivian, a lei foi apresentada com algumas falhas, mas ainda trouxe importante avanço. "Não dá para fazer uma terra arrasada, que estava tudo errado, mas traz coisas novas. Se tu perguntar assim: será que eu vou encontrar o mesmo material da Boate Kiss em um ambiente semelhante ao dela na data de hoje? Não vai encontrar", explica Vivian.
O material citado pelo engenheiro é a espuma que revestia o estabelecimento como um isolamento acústico. Altamente inflamável, tóxico, e inadequado para o ambiente, o revestimento rapidamente se acendeu em chamas, levando a uma das maiores tragédias do país e do mundo.
Primeiro, o vocalista tentou usar um extintor de incêndio, próximo ao palco, que falhou. Ninguém mais presente sabia utilizar o equipamento. Os quase 900 jovens, desesperados, buscaram a única porta de entrada e saída da casa noturna. No meio da confusão, o fogo atingiu a rede elétrica, e as luzes foram apagadas. Sem uma sinalização adequada, o público tinha dificuldade de se situar, ultrapassar obstáculos, como escada e guarda corpos, e encontrar saída em meio a escuridão e a fumaça espessa.
Assista ao documentário "Boate Kiss: além da notícia":
Episódio 1: A Madrugada da Tragédia
A situação é lembrada por Delvani Rosso, sobrevivente da tragédia. "A primeira coisa que vem na cabeça é o caos, aquela gritaria, as pessoas se batendo. Pensei que fosse briga, alguma coisa assim. Então fomos saindo, tentando acompanhar as pessoas com calma. Aí deu curto-circuito, as luzes se apagaram, e virou o caos", relata o jovem. Por conta da fumaça tóxica, Delvani desmaiou tentando sair, mas foi salvo pelo irmão, Jovani Rosso.
Atualmente, a lei nacional trata diretamente ou estabelece que as unidades federativas e municípios tenham regramento sobre esses fatores. De acordo com o Artigo 4º, para ser emitido o alvará ou autorização de funcionamento, deve ser observado:
"I - o estabelecido na legislação estadual sobre prevenção e combate a incêndio e a desastres e nas normas especiais editadas na forma do art. 2º desta Lei;
II - as condições de acesso para operações de socorro e evacuação de pessoas;
III - a prioridade para uso de materiais de construção de baixa inflamabilidade e de sistemas preventivos de aspersão automática de combate a incêndio [...]."
Em Porto Alegre, por exemplo, estabelecimentos devem obedecer à Lei Estadual 14.376, sancionada em dezembro de 2013, mesmo ano do incêndio, e às Resoluções Técnicas do Corpo de Bombeiros. São definidos por esses regramentos o treinamento obrigatório de funcionários para prevenção e combate de incêndio, o número mínimo e tipos de extintores para cada estabelecimento, além da sinalização de emergência necessária, entre outros pontos.
Mesmo após três alterações que levaram a um afrouxamento da legislação estadual, em 2014, 2016 e 2022, as regras para casas noturnas são bem mais rigorosa do que em 2013, como explica Marcelo Corrêa. O empresário possui desde 2010 uma casa de shows de rock na Cidade Baixa, bairro boêmio da capital, e precisou realizar duas grandes reformas para se adequar. A primeira, em 2014, foi para abrir uma segunda saída de emergência e instalar outra escada e assim garantir o escoamento de pessoas no mezanino do bar. "Não tem como fugir, faz parte da minha responsabilidade como empreendedor. Se a lei foi feita, ela existe, eu tenho que cumprir", afirmou.