Após 60 anos do golpe, Forças Armadas ainda precisam entender seu papel, avalia pesquisadora
Para especialista, governo Lula perde oportunidade de esclarecer papel dos militares na democracia ao se calar sobre data histórica
O golpe militar de 1˚ de abril de 1964 inaugurou um período de repressão política, censura, assassinatos e torturas de milhares de pessoas. A ditadura militar no Brasil fez parte de um ciclo de intervenções militares em toda a América Latina que até hoje influencia na concepção dos papéis de Exército, Marinha e Aeronáutica. Ainda de os prejuízos sociais e e econômicos do período já serem melhor dimensionados, o simbolismo político e as memórias dos desaparecidos e torturados ainda não estão sedimentados entre os brasileiros.
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Em entrevista ao Poder Expresso, a cientista social e especialista em Forças Armadas Adriana Marques afirma que ainda falta uma cultura consolidada na caserna e na sociedade sobre quais funções os militares devem exercer na República Democrática.
"É um período triste da nossa história e que precisa ser rediscutido para que ações de tentativa de ruptura democrática não voltem a acontecer. Nós não discutimos 1964, essa questão não foi colocada de uma maneira adequada para a sociedade. A classe política, o Legislativo não discutiu isso a contento e as Forças Armadas também não tiveram um letramento de olhar para esse período como uma época sombria da nossa história. Que não deve ser repetida, que não é papel das Forças Armadas darem um golpe de Estado nem ocuparem o centro do poder político”, declarou Marques.
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Apesar de, em 2023, o governo federal ter se mobilizado contra os atos golpistas de 8 de janeiro e, logo após a invasão das sedes dos três Poderes, ter condenado as possíveis comemorações da ditadura militar, em 2024 o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) preferiu se esquivar das possíveis tensões políticas que envolveriam um posicionamento mais claro com relação ao período militar e seus desdobramentos até os dias atuais.
“Ano passado, logo depois do 8 de janeiro, o Ministério dos Direitos Humanos fez uma cerimônia lembrando o golpe de 31 de março e não houve nenhum veto a esse ato. Agora, em 2024, o Clube Militar organizou uma homenagem à ditadura militar. Venderam convite a quase R$ 100 por pessoa. Setores da sociedade que defendem a ditadura militar continuam defendendo. E quem defende a democracia tem que se calar?É difícil fechar essa equação”, afirmou a cientista social.
Ainda de acordo com Adriana Marques, as possíveis implicações judiciais do apoio de militares aos atos golpistas do ano passado podem diminuir os anseios de comemorar os 21 anos em que quase nove mil pessoas foram mortas ou continuam desaparecidas.
"Eles estão temerosos com os desdobramentos da operação Tempo Veritatis e das prisões de militares de alta patente. Mas não vejo qual é o problema de eles serem presos. Se eles atentaram contra a democracia, têm que ser presos. O governo perde a chance de ser didático em relação a qual deve ser o lugar das Forças Armadas num regime democrático. A população que não não tem obrigação de conhecer os princípios da democracia. Fica a impressão de que a maneira de lidar com os militares num regime democrático é apaziguando e dando a eles tudo o que eles pedem, sem nada em troca, pra que eles não deem um golpe de Estado", disse.
"O presidente Lula está tentando, mais uma vez, uma estratégia de acomodação com as Forças Armadas. Isso não é uma novidade. Essa foi a estratégia adotada pelo presidente Lula no primeiro governo, mas foi uma estratégia adotada num outro contexto, um contexto político bastante diferente. Era um contexto em que a gente não tinha o protagonismo das Forças Armadas que tivemos nos últimos anos. É esse protagonismo que conta, inclusive o da possibilidade de que houve parte das Forças Armadas que participou da trama golpista de 8 de janeiro”, afirmou a cientista social e especialista em Forças Armadas Adriana Marques.