Diante de tragédia ambiental no RS, Congresso segue sem resposta ao "pacote da destruição"
Deputados e senadores adiam decisões, mas mantêm intactos projetos que flexibilizam regras ambientais e aumentam riscos
Em meio aos desdobramentos de uma tragédia ambiental que afeta mais de 2 milhões de pessoas no Rio Grande do Sul, o Congresso Nacional segue sem uma resposta definitiva a 28 propostas que aumentam riscos ao clima, aos ecossistemas, povos tradicionais e à segurança de populações. Com a alcunha de "pacote da destruição", a lista reúne uma série de medidas que flexibilizam regras ambientais e podem trazer danos irreversíveis ao país, conforme avaliam especialistas.
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As sugestões vão de projetos de lei a propostas para alterar a Constituição, e têm entre si um ponto em comum: a possibilidade de avançar com rapidez entre os parlamentares. Na lista, três sugestões são destaque.
Na Câmara, está a que possibilita a eliminação de campos nativos e pode autorizar a retirada de cerca de 48 milhões de hectares em praticamente todos os biomas brasileiros – uma redução de vegetação que, na prática, seria maior que o estado do Rio de Janeiro. Além das que estão no Senado. A que propõe possível anistia a desmatadores e a que altera o Código Florestal, possibilitando a diminuição de reservas legais.
A última das propostas chegou a ser pautada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado na quarta-feira (8), mesmo dia em que o Rio Grande do Sul alcançava a marca de cem mortes em decorrência das chuvas e listava 128 desaparecidos.
O projeto 3.334/2023 não chegou a entrar em votação por ausência do relator, senador Márcio Bittar (MDB-AC), e, até o momento, está fora da nova pauta da reunião da CCJ, prevista para o dia 15 de maio.
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A proposta foi alvo de críticas de especialistas, como a coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo. Ela destaca que mudanças feitas no Código Florestal, há menos de dez anos, foram negociadas com ruralistas que hoje defendem o novo projeto. À época, a adequação da atual legislação foi apontada como risco entre ambientalistas, por haver uma diminuição das áreas que poderiam ser exploradas.
"Esse dispositivo da regra fiscal, de 2012, foi muito debatido com ruralistas e houve consenso para a redação da lei que está hoje, mas parece que nunca estão satisfeitos. Eles mesmos conseguem a regra, quando a lei é debatida, e há uma voracidade para reduzir o rigor da legislação ambiental de uma forma permanente. Isso mostra uma postura negacionista da própria política ambiental e de sua importância. E também negacionista climática, porque não fazem a relação com aumento do gás estufa e os impactos climáticos", diz Araújo.
O projeto também foi questionado na última semana pelo Ministério do Meio Ambiente. Em um nota técnica, a Secretaria de Controle do Desmatamento aponta que apenas em termos de área florestal, a redução da reserva legal em 50% tem o potencial de desmatamento de 281.661 km² — área semelhante ao tamanho do Rio Grande do Sul.
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O relator Márcio Bittar tem defendido a diminuição para maior geração de empregos nos estados e sustenta que a medida é voltada para aumentar áreas de plantio. No texto do relatório, o senador argumenta que o governo federal não deve se preocupar unicamente com a defesa do meio ambiente: "A defesa do meio ambiente não é, contudo, o único ou o mais importante fim a ser perseguido pelo Estado brasileiro, haja vista outros bens constitucionais e direitos fundamentais a serem protegidos".
A visão do político é rebatida pela coordenadora do Observatório do Clima. Araújo destaca que além da possibilidade de crescimento agrícola atrelada às boas práticas ao meio ambiente, a responsabilidade ligada ao clima é uma obrigação constitucional, e necessária para o plantio. "Essa visão que para produzir precisa degradar, na verdade, é incorreta. A proteção ambiental ajuda a manter o equilíbrio necessário para proteção agrícola e agropecuária, a nossa agropecuária não pode ser de destruição, que vai destruindo e deixando terra arrasada", explica.
"É um tiro no pé, pois eles [ruralistas] estão cada vez mais tendo que trabalhar com culturas mais resistentes ao calor, problemas de abastecimento hídrico, precisam da água para fazer agricultura", aponta, em outro momento. A assessoria do parlamentar foi contatada para uma posição frente às críticas ao projeto, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.
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Pacote da destruição
A lista elencada pelo Observatório do Clima destaca 25 projetos de lei e três PECs (Propostas de Emenda à Constituição), que estão em análise na Câmara ou no Senado. As sugestões também foram elencadas e criticadas pela Frente Parlamentar Mista Ambientalista, composta por 175 deputados e 11 senadores.
O grupo produziu nota que também atribui a culpa da situação no Rio Grande do Sul às mudanças climáticas e a agentes públicos. "O Congresso precisa agir com responsabilidade antes das tragédias ocorrerem e rejeitar peremptoriamente a aprovação de legislações negacionistas das mudanças do clima", diz trecho de nota divulgada pelos parlamentares.
Na mesma linha, o coordenador da frente, deputado Nilto Tatto (PT-SP), afirmou ao SBT News que a intenção é impedir o avanço das propostas, e sustenta o arquivamento das dezenas de sugestões.
"Se a gente aprovar esses projetos que representam retrocesso, que não têm o cuidado com o meio ambiente, que representam mais desmatamento, nós vamos ter esse eventos eventos climáticos mais drásticos daqui para frente do que aquilo que a gente está assistindo hoje no Rio Grande do Sul", avalia o parlamentar. "Os eventos que nós estamos assistindo agora é como consequência daquilo que nós fizemos de errado na relação com o meio ambiente nos últimos 20, 30, 40 anos", emenda.
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Prioridade em atenção ao clima
Por outro lado, Tatto defende a urgência em debate em propostas para adaptação à mudanças do clima e de práticas voltadas à preservação do meio ambiente: "Dialoga com enfrentamento da crise climática e são projetos que, na verdade, são oportunidades para o Brasil na medida em que o Brasil tem condições naturais de sol, de vento, de capacidade de produção de bioenergia em sua agricultura de solo. O mundo inteiro procura a transição energética e o Brasil tem potencialidades para poder avançar nessa agenda ambiental".
A necessidade de adaptação a modelos mais sustentáveis, atrelada às reduções do desmatamento e de emissões para responder ao período climático, também é defendida pela especialista em administração pública e presidente do Instituto Talanoa, Natalie Unterstell.
"A gente já está vivendo em um planeta mais quente, de clima mais instável, então a gente vai ter que fazer essa adaptação da infraestrutura", avalia. "Agora, é realmente a redução das emissões, é a transição energética, é parar o desmatamento e, com certeza, buscar modelos mais sustentáveis. Inclusive para produção agrícola e pecuária", destaca, ao elencar alternativas para mudança.
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Situação no RS e mudanças climáticas
A relação entre as enchentes no Rio Grande do Sul e as mudanças climáticas é confirmada por ambientalistas e organizações, como a SOS Mata Atlântica e WWF Brasil. A situação extrema gaúcha também vem após a flexibilização de regras estaduais em meio ambiente adotadas em 2019, na primeira gestão do governador Eduardo Leite (PSDB).
"No ano passado, teve seca histórica na Amazônia. A tendência é que esses eventos extremos continuem a ocorrer não só no Brasil, isso é mundial, mas isso reduzindo a proteção que é garantida pela legislação ambiental, esses eventos extremos se potencializam", aponta Araújo, que também volta a ressaltar a importância da vegetação nativa em situações. "Em uma série de chuvas com essas dimensões vistas no Rio Grande do Sul, provavelmente não iria impedir a passagem da água, mas atenuaria, porque uma parte da água ficaria retida", completa.
O mesmo é destacado por Natalie Unterstell. "A natureza é uma barreira de defesa. Quando você tem uma água escorrendo muito rápido, se ela encontrar uma árvore, se o solo estiver absorvendo bem no meio do caminho, ela não vai descer tão rápido, ela não vai atingir tão fortemente nem pessoas nem infraestruturas", conclui.