Turquia: entenda 2º turno da eleição mais importante da história do país
Presidente Recep Tayyip Erdogan, e o líder da oposição, Kemal Kilicdaroglu, estão na disputa
Giovanna Colossi
Quase 61 milhões de eleitores vão às urnas neste domingo (27.mai) para decidir o segundo turno do pleito presidencial mais acirrado da história moderna da Turquia. De um lado está Recep Tayyip Erdogan, que busca manter o domínio de mais 20 anos, e de outro Kemal Kilicdaroglu, representante de uma coalizão multifacetada e líder do partido fundador da República da Turquia, o Partido do Povo (CHP).
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Diferente do que as pesquisas eleitorais mostraram às vésperas do primeiro turno, Erdogan venceu o confronto e agora aparece como favorito. A reeleição dada como incerta por uma questão de diversos fatores, entre eles o cerceamento das liberdades civis; inflação recorde; crise econômica; e os terremotos devastadores que deixaram mais de 50 mil mortos; deve se confirmar e garantir mais cinco anos de poder ao presidente com inclinações autocráticas.
As implicações disso para a Turquia são muitas, mas, entre as principais, está a continuidade do processo de redução e erosão da democracia antes tão pujante no país. É o que aponta o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID-UFRJ), Fernando Brancoli.
"O que a gente tem observado é a Turquia caindo ou deteriorando para um espaço mais autoritário. Existia uma esperança de que a coalizão que tentou bater de frente -- essa coalizão multifacetada e muito diversa -- teria a capacidade de ser um pouco mais producente, conseguiria atuar de maneira mais potente. O que se comprovou, no final das contas, é que é muito difícil retirar governos pouco liberais do poder ou mais autoritários depois de um certo tempo", avalia e continua:
"Cargos-chave no judiciário, uma imprensa muito controlada, um despejar de dinheiro público nas últimas semanas de eleição, pesaram bastante e, ao que tudo indica, vai ser ainda mais complicado para a Turquia no futuro conseguir se desvencilhar do que já se apresenta como a manutenção de um espaço autoritário", afirma
Assim como ele, observadores eleitorais internacionais da Assembleia Parlamentar da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), que acompanharam a votação de 14 de maio e estão na Turquia neste domingo, também concluíram que, embora a disputa fosse "competitiva e amplamente livre", Erdogan e os partidos no poder tiveram uma "vantagem injustificada", em virtude de uma cobertura "tendenciosa da mídia" e contínuas restrições às "liberdades fundamentais de reunião, associação e expressão", o que impediu a participação de alguns políticos e partidos da oposição, sociedade civil e meios de comunicação independentes no processo eleitoral.
Além disso, segundo os observadores, a campanha eleitoral foi caracterizada por "intensa polarização" e marcada por "dura retórica". Em um dos seus comícios em Istambul, Erdogan exibiu um vídeo deepfake onde supostos militantes curdos -- banidos por seu governo como terroristas -- expressavam apoio a Kilicdaroglu.
Em Istambul, a cientista política e pesquisadora do Grupo de Trabalho Oriente Médio e Mundo Muçulmano da Universidade de São Paulo (USP), Natália Calfat, conversou com o SBT News e deu sua percepção acerca do pleito.
"Erdogan venceu o primeiro turno das eleições, mas por uma margem muito estreita. Isso significa que o país está dividido, inclusive regionalmente. O leve favoritismo dele se concentra principalmente nas regiões centrais da Turquia. A distribuição de votos mostra que Kemal Kiliçdaroglu venceu em grandes cidades como Ankara, Istambul, nas cidades mediterrâneas ao sul do país e na Anatolia oriental", afirma.
De acordo com a pesquisadora, isso indica um crescimento significativo da solução autoritária e nacionalista para temas contemporâneos, um movimento que acompanha a ascensão da extrema-direita em outros lugares do mundo.
"Na prática, os prejuízos da crise econômica parecem mais urgentes no dia a dia da população comum que o combate ao autoritarismo. Assim, apesar das acusações de corrupção e das violações diversas, boa parte da população prefere manter o status quo e opta pela solução conservadora", pontua.
A população jovem, que não conhece outro líder além de Erdogan, pensa o contrário, contudo. E demonstram insatisfação, o que pode significar uma fuga do capital humano no caso de reeleição.
"No geral, com os jovens que conversei aqui na Turquia, estes pensam diferente, querem mudança principalmente pela falta de emprego, pelo alto custo de produtos importados e desvalorização da lira, e pensam inclusive em deixar o país", comenta Calfat.
Implicações da eleição turca para a Eurásia e Otan
Os laços históricos e comerciais de Ancara com o Oriente Médio e Cáucaso são centrais aos interesses europeus, principalmente energéticos e de segurança. País geoestratégico e a 11ª maior economia do planeta, a Turquia também é muito importante e ativa em questões na Eurásia, incluindo a guerra na Síria, as negociações da guerra na Ucrânia e a situação dos refugiados sírios.
A última questão, inclusive, é usada com frequência por Erdogan para chantagear a Europa, após o acordo de readmissão de refugiados entre o país e o bloco. Além disso, a Turquia possui o segundo maior exército da Aliança Militar do Norte (Otan), atrás apenas dos Estados Unidos.
Sua relevância regional e internacional não deve sofrer alterações independente do resultado do pleito. É o que avaliam ambos os especialistas.
Para Brancoli, a instabilidade é o futuro da Turquia, mas uma instabilidade em meio a relevância. Isso porque, independente de quem ganhe, os problemas atuais dificilmente serão resolvidos. Erdogan continuará com a sua política autoritária e problemas econômicos, e Kilicdaroglu teria que se equilibrar para agradar a coalizão e conseguir apoio do Congresso, de maioria oposicionista.
"Eu acho que a gente vai ter um país que, por um lado, continua sendo um agente muito importante internacionalmente. As principais crises globais hoje tem na Turquia um ator que é importante na sua resolução, se a gente parar para pensar em Ucrânia, a crise de refugiados para a Europa, guerra na Síria, tudo isso passa, em alguma medida, pela Turquia, então não é um país que vai apagar um pouco a sua importância. Mas acho que é um país que vai continuar muito instável do ponto de vista econômico e político", conclui
Agora, para Calfat, a vitória de Kilicdaroglu também pode representar uma reaproximação aos valores ocidentais, o que poderia abrir espaço para a retomada das negociações da entrada da Turquia na União Europeia, arrefecidas desde 2016. O que não deve acontecer caso Erdogan permaneça no cargo. Contudo, em qualquer um dos cenários, a Turquia permanecerá sendo um elo regional importante.
"Boa parte da atenção que tem sido voltada à região é justamente em razão da relevância e do impacto que essa potência regional possui sobre temas como a questão curda, dos refugiados, o combate ao terrorismo (e as estratégias de contra terrorismo), a guerra na Síria e na Ucrânia. Independente do cenário pós-segundo turno, não acredito que essa relevância regional se altere -- podendo inclusive atrair maior simpatia ocidental na eventualidade da vitória da oposição", avalia.