Ucrânia: Eu vi o começo do fim de uma era
Poucos acreditavam que a guerra aconteceria. Poucos previam o tsunami geopolítico que ela provocaria
Sérgio Utsch
Foi um telefonema de São Paulo que me alertou o que acontecia bem perto de onde eu estava naquela madrugada gelada de 24 de fevereiro de 2022, em Kiev. Eu acordei com a notícia que o chefe de Redação Rodrigo Hornhardt tinha acabado de ver nas agências internacionais. A Ucrânia estava sob ataque.
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Eu estava no país havia menos de 3 dias. Tinha vindo cobrir a crise gerada por uma mobilização militar russa sem precedentes nas fronteiras da Ucrânia. Os sinais estavam todos lá, mas poucos acreditavam que resultaria numa tentativa de invasão e ataques em larga escala ao território ucraniano.
Depois que desliguei o telefone, me dei conta dos aviões sobrevoando uma Kiev nublada naquele dia e os barulhos de explosões e tiros que, com o passar dos dias, ficaram cada vez mais próximos e cada vez mais frequentes. Havia um consenso de que era questão de dias para que os russos chegassem ao centro da cidade e tomassem a capital ucraniana.
Mais sólido do que esse consenso era o espírito do povo ucraniano. Milhões foram embora, lotaram estações de trem e estradas. Mas um grupo muito maior ficou para encarar os russos. A resiliência de homens e mulheres de várias gerações é impressionante.
As armas, munições e equipamentos enviados pelos países da Otan só começariam a chegar nas próximas semanas e meses. Foi esse apego ao próprio país e à própria identidade que fez com que os ucranianos segurassem um exército muito mais poderoso nas primeiras semanas do conflito.
A agressão russa despertou uma força que muitos ucranianos não imaginavam que tinham. Essa guerra transformou não apenas o destino deste país, mas foi um terremoto na estrutura geopolítica que conhecíamos.
A guerra aprofundou o isolamento da Rússia, uniu a União Europeia como poucas vezes na história, reaproximou os Estados Unidos da Europa, evidenciou a divisão entre o norte e o sul do planeta e expôs os muitos limites das Nações Unidas como instituição mediadora de conflitos internacionais.
O Brasil tem uma escolha difícil pela frente: defender a paz a qualquer custo, incluindo concordar que os russos fiquem com território de outro país pra congelar o conflito ou defender o direito da Ucrânia em lutar por um território que o governo brasileiro sempre reconheceu como sendo ucraniano. Ambas as opções têm um custo diplomático e consequências econômicas. Não é fácil ficar em cima do muro.
Naquele fevereiro de 2022, o mundo não tinha ideia do tsunami geopolítico que essa guerra provocaria. Naqueles dias, aliás, quem estava na Ucrânia pensava em tudo, menos em geopolítica. No meio do caos, entre bombas, tiros e o som aterrorizante das sirenes que alertam sobre ataques aéreos, o instinto humano foca em necessidades muito básicas.
A guerra que eu vivi ali no começo teve muitos desses momentos. Parte do meu trabalho era reportar esses bastidores: as horas passadas nos bunkers nos protegendo de ataques, as decisões pra preservar a segurança, a comida e a água que precisavam ser poupadas, o hotel que tive abandonar porque tinha sido tomado por uma milícia ucraniana, as cenas que presenciei ao acompanhar os diplomatas brasileiros, incluindo da destruição de documentos sigilosos.
Tudo são partículas de uma história gigantesca que mudou a realidade de boa parte do planeta. E algumas dessas pequenas grandes histórias estão no documentário "Ucrania - Arquivos da guerra", editado pelo Thiago Ferreira, nosso competente Editor de Internacional e pela talentosa Paula Rodrigues e que será exibido em breve na plataforma SBT News.
Este texto é um convite para um mergulho em algumas das milhões de histórias desse conflito.