Não tem carnaval, mas tem vida que segue na Ucrânia
Há bares, restaurantes e supermercados abertos, todos em "modo guerra"
Chove e faz muito frio lá fora. Estou em um Café em Dnipro, que funciona dentro de um antigo container. É moderno e tem várias opções de café, bolos, tortas e sanduíches. Todos parecem muito bons. Na pressa, peço apenas um capuccino pra levar. "Pequeno, por favor". "Você deveria escolher o grande. É quase o mesmo preço", diz a simpática atendente.
Ainda em Dnipro, o cenário agora é na periferia da cidade. Estou no nono andar de um prédio que foi alvo de um ataque de mísseis russos. No nono andar, visito dona Ludmila, de 75 anos. As novas janelas tinham acabado de ser instaladas para substituir as que explodiram.
O apartamento vizinho, com quem ela dividia o balcão, já não existe mais, nem a família que morava lá. Por alguns metros, a casa dela também não vira um monte de entulho. Dona Ludmila diz que quem tramou esse ataque "não pode ser humano" e sorri em agradecimento por nossa visita. Mal sabe ela o quão valiosa ela tinha sido para nossa reportagem.
Antes de sair, eu estendo a mão, mas ela me dá um abraço. E de braços dados, me leva pela casa ainda cheia de poeira até chegar à pequena cozinha. Só sou autorizado a ir embora depois de provar o Borsch (sopa ucraniana) que ela tinha acabado de fazer. Foi uma das melhores sopas que já tomei. E ouvir aquilo tira outros sorrisos desta babushka, como carinhosamente as vovós são chamadas nesta parte do mundo.
Agora estou em Bucha, na grande Kiev. Entro no supermercado pra comprar água e o que encontrasse pela frente pra comer. Já eram quase 4 da tarde e a fome batia forte. Tudo parecia novo, organizado e com muitas opções, inclusive pra comer. Saio com pedaços de pizza quentinha e uns sanduíches de queijo.
A senhora que trabalha no caixa percebe que não sou dali e me ajuda com as moedas. Conta pacientemente e solta um sorriso quando o gringo -- eu no caso - agradece em ucraniano. A moça que esperava na fila e que trazia pães e camarões também acha graça.
Não fosse uma porta onde ainda há um compensado de madeira no lugar do vidro, não haveria nenhum sinal da batalha que aconteceu ali na frente há menos de 1 ano. Uma coluna de tanques e carros blindados russos sofreu uma emboscada dos ucranianos, que os atacaram com drones, foguetes e muita artilharia.
Agora estou em Zaporíjia. Em um quarteirão tranquilo, na região central da cidade, um míssil derrubou 7 andares com 4 apartamentos cada. Em um deles, moravam pai, mãe, e 2 filhos, um de 7 e outro de 3 anos. Todos morreram. Foi no fim do ano passado.
Bem no apartamento do lado que, por questão de metros, não foi atingido, Anna recebia a irmã e amigos para o almoço e umas doses de vodka. "Apesar da guerra, a vida segue", ela me diz. A vida segue diferente e limitada, mas segue. Em Kiev, também sob constante ameaça, há até lojas de roupa de grife abertas, perto de muitas outras ainda fechadas.
Em todas essas cidades, o alerta de ataques aéreos foi acionado quando estávamos nas ruas. E não houve pânico em nenhuma delas. Além de estarem acostumados com o barulho que soa aterrorizante pra quem nunca ouviu de perto, os ucranianos entraram no "modo guerra", que obviamente traz muitas limitações, mas não impede que as pessoas continuem trabalhando, estudando ou, pasmem, se divertindo.
Desde outubro, quando os russos começaram a atacar a infraestrutura do país, energia tornou-se outro problema. Há racionamento e limitação na iluminação pública de várias cidades. Mas em Kiev, a cidade voltou a ficar bastante iluminada desde a última sexta-feira.
Ainda há uma lei marcial e um toque de recolher em vigor em toda a Ucrânia. Em Kiev, vale de 11 da noite às 5 da manhã. Em Dnipro, dá pra ficar na rua até meia-noite. Cada estado pode adaptar o horário à sua realidade.
Nada é normal. Nada funciona como antes. Mas funciona. Essa lógica não vale para aeroportos porque o espaço aéreo está fechado desde o ano passado. E se a cidade é palco de uma batalha, obviamente, tudo muda. É assim agora com Bakhumt e foi assim com Kherson, retomada pelos ucranianos e Mariupol, invadida e ainda ocupada pelos russos; além de outras dezenas de vilas e cidades menores ao sul e leste da Ucrânia.
Também é muito distante do normal a vida de milhões de refugiados internos, que deixam as áreas de confronto em busca de menos insegurança. A mudança mais radical é pra essas pessoas e, obviamente, pras famílias dos mortos, militares ou não. Lutar é algo quase inevitável. Todos os ucranianos vão ter algum amigo, conhecido ou parente lutando contra os russos.
A lógica da guerra da Ucrânia é bem parecida com a de outras guerras: quanto mais próximo da batalha, mais perigoso será e menos serviços haverá. Mas mesmo onde não há batalha, o risco é de um ataque aéreo. Nesse caso, os últimos 12 meses já mostraram que o alvo pode ser literalmente qualquer lugar.
As dificuldades são imensas, mas o caos logístico e o pânico dos primeiros meses do ano passado já não existe mais. Os ucranianos parecem dispostos a fazer os sacrifícios necessários, por quanto tempo for, pra reconquistar seu território. A guerra revelou também pra eles uma força que muitos não imaginavam ter.