Ofender Gilberto Gil é torcer contra o Brasil
Bolsonarista agrediu verbalmente o cantor no estádio onde a seleção venceu a Sérvia
Sérgio Utsch
Das lembranças mais antigas que tenho na vida, estão os momentos que antecediam a ida pra escola. Nos primeiros anos do antigo primário, minhas aulas eram à tarde. E não tinha negociação com minha mãe. Com fome ou não, tinha que almoçar antes. "Na boca ou na roupa", ela dizia.
O prazo pra raspar o prato era a música do "Sítio do Picapau Amarelo", que também era senha pra pegar a merendeira e seguir pra escola. Quando acabava o programa que tomou conta da minha infância, eu tinha poucos segundos de trégua.
Foi ali que Gilberto Gil entrou na minha vida. Seus refrões seguiam comigo por quatro quarteirões até a Escola Dr. Lund e, por vezes, permaneciam a aula inteira na cabeça do menino que estava sendo alfabetizado.
Corta pra 2003. Já se passaram muitos Expressos, Refazendas, Realces. O braço das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação já o tinha escolhido como Embaixador da Boa Vontade "pra lutar contra a fome". O Tempo é Rei pra este brasileiro de Tororó.
Em Nova York, naquela tarde de 2003, o então ministro da Cultura faz os engravatados da ONU revelarem seu rebolado desjeitoso, num show de Brasil durante a Assembléia Geral das Nações Unidas. O então Secretário-Geral, Koffi Annan, tocou percussão na execução de "Toda menina baiana".
Naquele momento, Gilberto Gil era a representação do Brasil mais bonito que se possa imaginar. O que ele trazia em seus versos e notas era a representação de um país genuinamente sofrido, problematicamente desigual, mas convictamente disposto a ser feliz.
Corta pra 2022. O Brasil que se vende pro mundo agora é o da raiva. Gil já é um senhor de 80 anos. Está torcendo pela Seleção na Copa do Mundo. É hostilizado por um cidadão, que usa o mais chulo dos vocabulários, motivado por uma discordância política.
A ofensa não era só contra Gilberto Gil e sua mãe, Dona Claudina, que morreu em 2013 e sobre quem há muitas referências na extensa obra dele. Era contra a lógica de que discordâncias são resolvidas em debates, de que protesto não quer dizer ofensa e que liberdade de expressão não pode ser confundida com liberdade pra ofender e caluniar.
Da mesma maneira, são legítimos os questionamentos sobre a decisão de Neymar apoiar a extrema direita brasileira e sobre suas pendências com a Receita Federal. Mas comemorar sua lesão é um jogo tão rasteiro quanto o do sujeito que agrediu um das faces mais ricas, bonitas e completas da brasilidade.
Questionar Gil é legítimo, mas é preciso certo nível de educação e capacidade argumentativa que o autor das ofensas não demonstra ter. Ofender um avô, acompanhado de filhos e netos, por uma discordância política não é defender a família, nem a pátria, nem a liberdade. Ofender Gil é torcer contra o Brasil. E um crime de lesa-pátria e um ato de traição. É não ser patriota. É colocar o Brasil debaixo de todos e menor do que tudo.