"Ninguém está imune ao caos climático", alerta especialista
Onda de calor que atinge Europa deve ficar muito forte pelo menos até próxima 3ª feira (26.jul)
Guilherme Resck
Mortes, incêndios florestais, pessoas obrigadas a deixar seu lar para trás e aeroportos fechados configuram o cenário trágico proporcionado pela onda de calor que atinge a Europa desde o mês passado. O fenômeno, de acordo com especialistas, é muito preocupante, mas não surpreende tanto, porque no atual ritmo de aumento da temperatura média global, ritmo este para o qual as ações humanas contribuem, eventos extremos, como o registrado no Velho Continente, estão cada vez mais frequentes.
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De acordo com o doutor em ciências atmosféricas e professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece) Alexandre Costa, em decorrência do fato de a temperatura média do planeta estar atualmente 1,2ºC acima do patamar pré-industrial, "ondas de calor com o que a gente chama de tempo de recorrência de dez anos estão quase três vezes mais frequentes, e as zonas de calor muito extremas, aquelas com tempo de recorrência de 50 anos, estão quase cinco vezes mais". Dessa forma, fala Costa, a humanidade está "meio que jogando um dado viciado. Ou seja, assuntos de ocorrência de ondas de calor extremos estão se multiplicando e o patamar em que elas acontecem, isto é, a intensidade delas, também é deslocado para valores maiores".
O especialista explica que onda de calor consiste no surgimento de um sistema de alta pressão, que "impede a progressão de massas de ar frio que podem trazer uma redução de temperatura" e, caracterizado por movimento descendente da massa de ar, "inibe a formação de nuvens, mantém céu claro, e aí você imagina que nos dias longos do verão europeu isso implica numa quantidade enorme de radiação solar que não só mantém, mas eventualmente até amplifica o aquecimento no local". Entretanto, acrescenta, por causa do aquecimento global, este evento, que seria algo muito improvável no passado, se tornou "muito mais provável no presente". "E caso a gente continue no imobilismo em que nós estamos, com governos fazendo vista grossa ou até incentivando o desmatamento, sem políticas em boa parte do mundo para uma transição energética real, que encare a necessidade de reduzir a demanda energética para podermos abandonar os combustíveis fósseis, sem que isso seja feito, isso daí que a gente viu se torna o novo normal. E aí não queiramos saber o que vai ser o extremo desse outro mundo", alerta.
Para o doutor em ciências atmosféricas, todos os países do mundo deveriam ficar atentos ao que vem ocorrendo na Europa desde o último mês, porque "ninguém está imune ao caos climático". "Por isso que a gente diz com todas as letras: nós estamos em uma situação de emergência climática. E eu faço minhas as palavras do António Guterres, da Organização das Nações Unidas, que caracteriza a nossa rota atual como de suicídio coletivo. Nós só temos duas opções: ou uma ação coletiva, consertada globalmente, ou a amplificação a multiplicação de tragédias como essa num nível inadministrável". Guterres instou países a cumprirem metas do Acordo de Paris.
Márcio Cataldi, meteorologista e pesquisador do Laboratório de Monitoramento e Modelagem do Sistema Climático da Universidade Federal Fluminense (LAMMOC/UFF) fala que a previsão é de que onda de calor na Europa ficará "muito severa" no mínimo até a próxima 3ª feira (26.jul), especialmente na Espanha. De acordo com ele, no país, "as temperaturas máximas no sul podem chegar em torno dos 45ºC". Cataldi reforça que tentar reduzir a intensidade e frequência desse tipo de evento extremo como esse passa pelo combate a práticas do dia a dia que contribuam para o efeito estufa e implementação de políticas públicas em prol da diminuição deste também, como a troca de matrizes energéticas.
O efeito estufa é natural e ocorre com a retenção, por gases na atmosfera, de parte da radiação térmica emitida pela superfície terrestre depois que esta é aquecida pelo sol. Por meio dele, a temperatura da Terra fica num nível adequado para a vida se desenvolver. Porém, à medida que a humanidade emite gases de efeito estufa, mais calor é acumulado no planeta. "E se a gente está acumulando mais calor num sistema totalmente não linear, como é o nosso planeta, ele é muito caótico, pode gerar grandes distúrbios", completa Cataldi.
Conforme o meteorologista também, por causa do atual ritmo de crescimento da temperatura média global, os eventos extremos precisam ser esperados com mais frequência. "Na maior parte deles, vai estar ligado, sim, a essas ondas de calor e eventos muitas vezes com precipitação extrema", completa. Para o especialista, diante desse cenário, as sociedades precisam trabalhar em duas frentes: tentar desacelerar o processo de mudanças climáticas, ou seja, reduzir a emissão de gases de efeito estufa; e se preparar para a ocorrência de eventos extremos, com a implementação de infraestrutura e serviços de atendimento à população.
Ele relembra que a população da Europa não está acostumada com as temperaturas elevadas, então muitos não têm ventilador, ar condicionado em casa nem o hábito de beber água e, por vezes, não acham os aparelhos no mercado para comprar. "Então, assim, é uma preparação mesmo de país. Sabendo que isso vai acontecer, tem que começar a trabalhar culturalmente com a população, tem que ter esses mecanismos de refrigeração. Ventilador é muito importante que ele tira a massa de ar saturada de cima da gente. Possibilita a nossa refrigeração, então é ter os mecanismos tecnológicos aí, de refrigeração e trabalhar com os idosos. Para que eles se hidratem, acompanhar de perto", pontua. Segundo Cataldi, a desidratação aumenta "a viscosidade do sangue e, consequentemente, o número de infartos", e os idosos são os que mais morrem por causa de ondas de calor no Velho Continente, por falta de água no organismo.
Outras ondas
O professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece) Alexandre Costa fala que uma onda de calor semelhante à que atinge a Europa agora foi registrada, em 2015, na Índia e no Paquistão, matando mais de 4 mil pessoas. No território europeu, nos últimos anos, houve ondas em 2017, junho de 2019 e agosto de 2021. Os anticiclones responsáveis pela de 2017 e do ano passado foram denominados Lúcifer. O sul do continente e o norte da África foi afetado em agosto último.