"Ninguém está imune ao caos climático", alerta especialista
Onda de calor que atinge Europa deve ficar muito forte pelo menos até próxima 3ª feira (26.jul)
Mortes, incêndios florestais, pessoas obrigadas a deixar seu lar para trás e aeroportos fechados configuram o cenário trágico proporcionado pela onda de calor que atinge a Europa desde o mês passado. O fenômeno, de acordo com especialistas, é muito preocupante, mas não surpreende tanto, porque no atual ritmo de aumento da temperatura média global, ritmo este para o qual as ações humanas contribuem, eventos extremos, como o registrado no Velho Continente, estão cada vez mais frequentes.
+ Leia as últimas notícias no portal SBT News
De acordo com o doutor em ciências atmosféricas e professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece) Alexandre Costa, em decorrência do fato de a temperatura média do planeta estar atualmente 1,2ºC acima do patamar pré-industrial, "ondas de calor com o que a gente chama de tempo de recorrência de dez anos estão quase três vezes mais frequentes, e as zonas de calor muito extremas, aquelas com tempo de recorrência de 50 anos, estão quase cinco vezes mais". Dessa forma, fala Costa, a humanidade está "meio que jogando um dado viciado. Ou seja, assuntos de ocorrência de ondas de calor extremos estão se multiplicando e o patamar em que elas acontecem, isto é, a intensidade delas, também é deslocado para valores maiores".
O especialista explica que onda de calor consiste no surgimento de um sistema de alta pressão, que "impede a progressão de massas de ar frio que podem trazer uma redução de temperatura" e, caracterizado por movimento descendente da massa de ar, "inibe a formação de nuvens, mantém céu claro, e aí você imagina que nos dias longos do verão europeu isso implica numa quantidade enorme de radiação solar que não só mantém, mas eventualmente até amplifica o aquecimento no local". Entretanto, acrescenta, por causa do aquecimento global, este evento, que seria algo muito improvável no passado, se tornou "muito mais provável no presente". "E caso a gente continue no imobilismo em que nós estamos, com governos fazendo vista grossa ou até incentivando o desmatamento, sem políticas em boa parte do mundo para uma transição energética real, que encare a necessidade de reduzir a demanda energética para podermos abandonar os combustíveis fósseis, sem que isso seja feito, isso daí que a gente viu se torna o novo normal. E aí não queiramos saber o que vai ser o extremo desse outro mundo", alerta.
Para o doutor em ciências atmosféricas, todos os países do mundo deveriam ficar atentos ao que vem ocorrendo na Europa desde o último mês, porque "ninguém está imune ao caos climático". "Por isso que a gente diz com todas as letras: nós estamos em uma situação de emergência climática. E eu faço minhas as palavras do António Guterres, da Organização das Nações Unidas, que caracteriza a nossa rota atual como de suicídio coletivo. Nós só temos duas opções: ou uma ação coletiva, consertada globalmente, ou a amplificação a multiplicação de tragédias como essa num nível inadministrável". Guterres instou países a cumprirem metas do Acordo de Paris.
Márcio Cataldi, meteorologista e pesquisador do Laboratório de Monitoramento e Modelagem do Sistema Climático da Universidade Federal Fluminense (LAMMOC/UFF) fala que a previsão é de que onda de calor na Europa ficará "muito severa" no mínimo até a próxima 3ª feira (26.jul), especialmente na Espanha. De acordo com ele, no país, "as temperaturas máximas no sul podem chegar em torno dos 45ºC". Cataldi reforça que tentar reduzir a intensidade e frequência desse tipo de evento extremo como esse passa pelo combate a práticas do dia a dia que contribuam para o efeito estufa e implementação de políticas públicas em prol da diminuição deste também, como a troca de matrizes energéticas.
O efeito estufa é natural e ocorre com a retenção, por gases na atmosfera, de parte da radiação térmica emitida pela superfície terrestre depois que esta é aquecida pelo sol. Por meio dele, a temperatura da Terra fica num nível adequado para a vida se desenvolver. Porém, à medida que a humanidade emite gases de efeito estufa, mais calor é acumulado no planeta. "E se a gente está acumulando mais calor num sistema totalmente não linear, como é o nosso planeta, ele é muito caótico, pode gerar grandes distúrbios", completa Cataldi.
Conforme o meteorologista também, por causa do atual ritmo de crescimento da temperatura média global, os eventos extremos precisam ser esperados com mais frequência. "Na maior parte deles, vai estar ligado, sim, a essas ondas de calor e eventos muitas vezes com precipitação extrema", completa. Para o especialista, diante desse cenário, as sociedades precisam trabalhar em duas frentes: tentar desacelerar o processo de mudanças climáticas, ou seja, reduzir a emissão de gases de efeito estufa; e se preparar para a ocorrência de eventos extremos, com a implementação de infraestrutura e serviços de atendimento à população.
Ele relembra que a população da Europa não está acostumada com as temperaturas elevadas, então muitos não têm ventilador, ar condicionado em casa nem o hábito de beber água e, por vezes, não acham os aparelhos no mercado para comprar. "Então, assim, é uma preparação mesmo de país. Sabendo que isso vai acontecer, tem que começar a trabalhar culturalmente com a população, tem que ter esses mecanismos de refrigeração. Ventilador é muito importante que ele tira a massa de ar saturada de cima da gente. Possibilita a nossa refrigeração, então é ter os mecanismos tecnológicos aí, de refrigeração e trabalhar com os idosos. Para que eles se hidratem, acompanhar de perto", pontua. Segundo Cataldi, a desidratação aumenta "a viscosidade do sangue e, consequentemente, o número de infartos", e os idosos são os que mais morrem por causa de ondas de calor no Velho Continente, por falta de água no organismo.
Outras ondas
O professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece) Alexandre Costa fala que uma onda de calor semelhante à que atinge a Europa agora foi registrada, em 2015, na Índia e no Paquistão, matando mais de 4 mil pessoas. No território europeu, nos últimos anos, houve ondas em 2017, junho de 2019 e agosto de 2021. Os anticiclones responsáveis pela de 2017 e do ano passado foram denominados Lúcifer. O sul do continente e o norte da África foi afetado em agosto último.