Na Ucrânia de 2022, cada dia sem guerra já é uma vitória
Sérgio Utsch, correspondente do SBT, relata o cotidiano em Kiev, a capital à espera de eventual guerra
Sérgio Utsch
É uma hora da tarde, na Praça da Independência, coração de Kiev. Nos alto-falantes espalhados por pontos estratégicos, o hino da Ucrânia começa a ser tocado. Tem sido assim todos os dias na capital do país que luta pra garantir soberania e identidade. Nesta 4ª feira (23.fev), o momento solene foi seguido por um outro ritmo. Um grupo de jovens, usando um aparelho de som próprio e mais modesto, tocou músicas como Californication, da banda norte-americana Red Hot Chilli Peppers e Riders on the Storm, do grupo The Doors, também dos Estados Unidos.
Horas antes, a TV russa exibia um gráfico pra mostrar concessões de antigos czares e dos ex-líderes Stalin, Lenin e Khuruschev que constribuíram para a formação do que é hoje o território ucraniano. A narrativa segue o discurso histórico de Vladimir Putin, na última segunda-feira, pra quem a Ucrânia não é um estado soberano, mas uma parte da Rússia, que hoje serve de marionete para os Estados Unidos e a União Europeia.
Se para o público russo o questionamento da identidade de um povo com quem tem muitas semelhanças pode ter efeitos favoráveis à estratégia de Moscou, em território ucraniano, o sentimento de unidade parece ter sido reforçado. E por trás dessa onda de nacionalismo, está um humorista, que agora senta na cadeira da presidência. "Agora as pessoas tão se juntando, ele está ganhando força. Você vai ter que defender a Ucrânia. Então, mesmo quem é contra ele, está torcendo pra que ele desempenhe um bom trabalho", diz o brasileiro Walther Lang, sobre o presidente Volodomir Zelenskyy.
Walther é um dos estimados 500 brasileiros que vivem atualmente no país. Artista 3D, o paulista de 47 anos é casado com uma ucraniana desde 2017. Ao SBT News, ele fala das muitas semelhanças entre os dois povos, mas afirma não ter dúvida da identidade própria do país que escolheu pra morar. "Quando você olha de fora, parece tudo a mesma coisa. É como alguém de fora falar que na América Latina é tudo a mesma coisa, que não vai ter diferença entre argentinos e chilenos."
O brasileiro lembra que Kiev surgiu primeiro que a Rússia, um argumento usado pelo governo norte-americano em um contra-ataque ao que os Estados Unidos chamam de guerra de desinformação dos russos. Em suas redes sociais, a Embaixada em Kiev publicou uma montagem, que destaca os monumentos que já existiam na capital ucraniana entre os anos 996 e 1108 e os compara com as florestas que ainda cobriam o território do que hoje é a cidade de Moscou.
? U.S. Embassy Kyiv (@USEmbassyKyiv) February 22, 2022
A animosidade entre os governos da Rússia e da Ucrânia não se reflete necessariamente nas ruas. "Somos todos humanos, pessoas normais, queremos paz, uma vida feliz", dizem Daria e Khestia, ambos de 18 anos e estudantes de Gastronomia. Em Moscou, a engenheira aposentada Nina Antolevna deu um depoimento muito parecido ao SBT News. "Não queremos guerra. Nunca! A idéia de que nós (o povo) queremos guerra com a Ucrânia é absurda."
Assim como a engenheira, os estudantes ucranianos também falam russo. Na Ucrânia, quase toda a população fala as duas línguas, que alguns descrevem ter a mesma distância do português com o espanhol. "Só que assim como brasileiros tem mais facilidade de entender o espanhol do que vice-versa, os ucranianos entendem melhor o russo do que os russos entendem o ucraniano", compara o brasileiro Walther.
O idioma tem sido usado por Moscou pra alegar uma presença massiva da população russa em território ucraniano que precisaria de proteção. Se no leste do país muitos se identificam mais com os valores russos com do que com os da Europa Ocidental, há milhões de pessoas que não enxergam dessa maneira. "A maioria de nós fala russo, mas somos ucranianos. Eu não quero ser parte da Rússia. É nossa soberania. Nós somos ucranianos. Eu sou ucraniana, não russa", diz Ksusha. A escritora de 25 anos fazia um protesto solitário por paz na Praça da Independência.
Mas pra muitos ucranianos, o desejo de paz não significa abrir mão da luta. A caminho do trabalho, no centro de Kiev, Anthonia diz que a posição do presidente russo não é boa para os ucranianos, mas também é "ruim pra ele". "Nós somos corajosos. Se precisarmos defender o nosso país, nós vamos lutar", conta a bancária de 35 anos. Ela sabe que está no lado mais vulnerável dessa disputa, assim como muitos que vivem no país que o governo da Rússia não reconhece.
Tanto o brasileiro Walther quanto os estudantes ucranianos ouvidos pelo SBT News já deixaram um mochila pronta se o pior acontecer. "Minha família já está preparada caso tenhamos que sair às pressas", afirma Daria. Na Ucrânia de 2022, cada dia sem guerra já é uma vitória.