Entenda quem são os não binários e como se comunicam
Pessoas que não se identificam nem como mulher, nem homem já são 3 milhões no Brasil
Existem, no Brasil, pelo menos 3 milhões de pessoas não binárias, aquelas que não se identificam nem como mulher, nem homem, segundo a pesquisa realizada pela Faculdade de Medicina de Botucatu (UNESP). O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) foi procurado pelo SBT News, mas afirmou que não tem dados relacionados ao tema. Para facilitar a leitura desta reportagem, confira o glossário de termos no final da página.
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"A sociedade já tem isso (identidade não binária) desde lá atrás. Nós apenas começamos a ter consciência disso. Nos anos 80 isso era estudado nos Estados Unidos. Nós é que estamos um pouquinho atrasados nessa informação toda", afirma o sexólogo da INTT, João Ribeiro.
Ao redor do mundo, diversos povos se identificam de gênero fluido. Os Bugis, um grupo étnico da ilha de Sulawesi, na Indonésia, se reconhecem como cinco: homem, mulher, mulher masculina (calalai), homem feminino (calabai) e bissu que transita entre os dois polos. Na polinésia, o povo Mahu também se identifica como uma mistura de homem e mulher, sem distinção.
Até a tomada da América do Norte pelos europeus, não havia a polarização de gêneros, mas a multiplicidade deles. Segundo a plataforma Indian Country Today, as comunidades nativas da América do Norte reconheciam os seguintes gêneros: feminino, masculino, feminino de dois espíritos, homem de dois espíritos e transgênero (pessoas que nasceram com corpo de homem, mas se identificam como mulheres e vice-versa).
O cocriador da linguagem neutra e um dos poucos CEOs transgênero do Brasil Pri Bertucci afirma que as questões de gênero ainda não são bem compreendidas pela sociedade: "Uma identidade de gênero tem três possibilidades na nossa existência. Você tem homem (transgênero ou não), mulher (transgênero ou não) e não binário. (...) Quando eu falo de papel e expressão de gênero eu tô falando de feminino, masculino e andrógeno (mistura entre os dois), que é diferente de homem mulher e não binário. Quando eu falo de corpo aí eu tô falando de macho, fêmea e intersexo. O problema é linguístico."
O especialista explica também a diferença entre gênero e papel e expressão de gênero: "Papel e expressão de gênero é o jeito que eu me apresento para o mundo, é o jeito que eu quero que o outro me perceba. Então tem a ver com as minhas vestimentas, com os meus gestos, com os meus adereços. Se um homem põe uma saia e pinta as unhas, não quer dizer que esse homem virou mulher, que dizer que esse homem está usando adereços do mundo considerado feminino".
O processo de descoberta da identidade não binária é descrita pelos entrevistados como "íntima, profunda, complicada e triste" na medida em que o preconceito e falta de aceitação existem por parte da sociedade e da própria família. Van Marcelino se identifica como não binário, trabalha na área de produção cultural e conta que se mostra para o mundo de forma andrógena (mistura do feminino com o masculino). "Uma coisa é como eu nasci, outra coisa é como eu me identifico. Ter uma vagina não faz ninguém mulher, mas falar de gênero no Brasil ainda é algo muito complicado, principalmente na periferia onde eu moro que ninguém entende ainda", comenta.
O psicólogo clínico Toni Souza, que atende principalmente pessoas LBTGQIAP+, explica o processo de construção da identidade: "Quando a criança nasce, no momento do nascimento o médico vira pros pais e diz é menino ou menina, só que essa construção da identidade já começa pelas pessoas que vão estar educando essa criança ali. Então o pai e a mãe começam a depositar suas expectativas nessa criança, de o meu filho vai jogar bola, minha filha vai brincar de boneca, quando na verdade, essa construção da identidade tem que partir também da criança e como ela se identifica. Essas expectativas estão muito atreladas no modelo construído nesse pai e nessa mãe pela criação deles e esse modelo vai refletir também em como essa criança vai ter um sentimento de pertença e de ser aceito".
Souza conta que as maiores queixas nas sessões de terapias são provenientes dessas relações familiares e das expectativas não atendidas por essas pessoas: "Elas entram em um processo de descoberta e de aceitação, tanto dela quanto socialmente. A grande maioria das demandas que se encontra em uma clínica por esse público são demandas de aceitação, são demandas de ah meus pais não me aceitam, eu sofro no trabalho com preconceito, eu sofro na rua e tudo que essas pessoas querem é ter seu espaço e serem vistas como elas se identificam".
Linguagem não binária e seu uso
Famosos como Demi Lovato, Sam Smith, Bárbara Paz e Ezra Miller se identificaram como não binários durante entrevistas. Em postagem no Instagram, Demi pediu que não usassem mais o pronome "her" (ela) ou "he" (ele) para se referir a sua pessoa e sim "they" que significa eles e é usado como linguagem não binária nos Estados Unidos, o equivalente ao "elu/ile" no Brasil. "Todos os dias quando acordamos temos a oportunidade e chance de escolher o que queremos e desejamos ser", escreveu em rede social.
Pri Bertucci conta como trouxe o primeiro pronome de gênero neutro para o País: "Quando eu chego no Brasil em 2010, que eu sei que não existe um pronome de gênero, eu começo a pesquisa e a investigar se existe alguma publicação ou estudo científico, será que ninguém pensou nisso ainda? Esse meu incômodo foi evoluindo, começamos uma conversa mais profunda em 2013 sobre esse assunto e em 2014 a gente lança oficialmente o pronome de gênero neutro, o primeiro da língua portuguesa que é o ile/dile".
Ele ainda relembra a origem da linguagem antes da colonização europeia: "Os povos originários da terra, indígenas, já usavam a linguagem neutra antes do processo de colonização. Não é uma invenção de uma nova linguagem, é uma recuperação da linguagem usada antes da colonização. Quando a pessoa diz a gente não muda, muda sim o português, se você lembrar antigamente nós usávamos "vosmicê", teve mudança, o acordo ortográfico teve mudança, a língua vai acompanhar a evolução do ser humano e não ao contrário".
O especialista afirma que a crise de saúde mental que afeta as pessoas trans e não binárias é proveniente da falta de reconhecimento dessas pessoas nos lugares que frequentam: "Você entra em um restaurante e sempre erram o seu gênero e você não poder ver uma representatividade da sua identidade em nenhum lugar. Graças a essa evolução hoje em dia você tem peças de filmes com linguagem neutra, tem personagens não binários em vários filmes".
O psicólogo reforça a importância da adoção desta nova linguagem para inclusão de todos os gêneros: "A língua portuguesa não tem gênero neutro, o gênero masculino e feminino tá marcado no cotidiano e nas palavras. A cadeira é substantivo feminino, o armário masculino. Tudo que for exclusivo para o LGBTQIAP+ não é interessante. Ser tratado como eu me reconheço vai contribuir para que eu seja aceito e essa linguagem é extremamente importante para que eu me reconheça como uma pessoa que tem valor".
Apesar de algumas marcas, instituições, peças culturais e até a Organização das Nações Unidas (ONU) já estarem apoiando o uso da linguagem não binária, o Governo Federal ainda resiste, sendo que a proibiu, em publicação no Diário Oficial da União (DOU), de ser usada nos projetos da lei Rouanet, baseada em promover incentivo fiscal a empresas que ajudam financeiramente o mundo cultural. "Fica vedado, nos projetos financiados pela Lei nº 8.313/91 (Lei Rouanet), o uso e/ou utilização, direta ou indiretamente, além da apologia, do que se convencionou chamar de linguagem neutra", afirma o texto.
Na França, um dos principais dicionários, o Le Robert, anunciou em comunicado na última 4ª feira (17.nov) que adicionou o pronome "iel" à sua lista de palavras, depois que os pesquisadores notaram que o pronome neutro estava ganhando popularidade. A novidade desagradou o governo francês e provocou discussão na imprensa.
O que significa?
Identidade de gênero: o gênero que a pessoa se identifica, podendo ser mulher, homem ou não binário, independentemente do estilo e órgão reprodutor.
Orientação afetivo-sexual - tem a ver com qual gênero a pessoa mantém relações sexuais e afetivas e tem como representação a sigla LBTQIAP+.
LGBTQIAP+: sigla para Lésbicas (mulheres que se relacionam com mulheres), Gays (homens que se relacionam com homens), Bissexuais (pessoas que se relacionam com os dois sexos), Transexuais (pessoas que se identificam com o gênero oposto ao que nasceram), Queer (pessoas não heteras, nem cisgêneras), Intersexo (pessoas com características biológicas femininas e masculinas), Assexual (pessoas que não se relacionam com nenhum gênero) e Pansexuais (pessoas que se relacionam com todos os gêneros).
Expressão de gênero: É como a pessoa manifesta publicamente seu gênero, através de roupas, nome, acessórios, cabelo, podendo ser feminino, masculino ou andrógeno (mistura dos dois).
Gênero não binário: pessoas que não se identificam nem exclusivamente como homem, nem como mulher.
Queer: antigamente o termo norte-americano era usado como ofensa, hoje é o nome dado às pessoas que transitam entre o gênero masculino e feminino.
Sexualidade: conjunto de comportamentos relacionados à necessidade e prazer sexual.
Sexo: está ligado à identificação da pessoa pelo aparelho reprodutivo, ou seja, macho, fêmea ou intersexo (pessoas com características biológicas de mulher e homem).
Linguagem não binária: linguagem que inclui as pessoas não binárias, com a utilização do pronome ile/dile ao invés de ele/dele ou ela/dela e uso das letras "e" e "u", como na palavra "todes" ao invés de todos.