Relator ignorou técnicos do TCU em processo das diárias da Lava Jato
Bruno Dantas apontou gastos indevidos, apesar de pareceres por improcedência, arquivamento e falta de provas
Ricardo Brandt
O ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União (TCU), relator do processo contra procuradores da Lava Jato por gastos de diárias em viagens, travou um embate atípico com os técnicos do órgão, segundo especialistas externos consultados pela reportagem, antes de votar pela abertura da Tomada de Contas Especial. A ação apura eventual prejuízo aos cofres públicos e busca responsabilizar dez membros do Ministério Público Federal (MPF), entre eles Deltan Dallagnol, ex-coordenador da força-tarefa de Curitiba, e Rodrigo Janot, ex-procurador-geral da República.
De agosto de 2020, quando foi emitido o primeiro parecer técnico, até dezembro do ano passado, o processo foi e voltou pelo menos oito vezes, do gabinete de Dantas para a Secretaria Geral de Controle Externo (Secex) - órgão do TCU responsável pela análise técnica dos processos. Nesse vai e vem, foram emitidos quatro pareceres pelos especialistas do tribunal, todos com indicativos de problemas e falta de elementos para se apontar irregularidades nos gastos e a consequente necessidade de responsabilização de eventuais culpados e devolução do dinheiro aos cofres públicos.
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Via de regra, as recomendações dos técnicos do TCU são usadas como base para os votos dos ministros relatores. Não são tão comuns processos em que o relator decide devolver, mais de uma vez, os pareceres, fazendo pedidos de novas diligências e discordando do entendimento técnico conclusivo da Secex, avaliam auditores do tribunal.
O processo foi aberto com base em um pedido de parlamentares do PT, que acusaram excessos nos gastos e outras supostas irregularidades. O primeiro parecer técnico da Secex é de 26 de agosto de 2020. "A presente representação não pode ser reconhecida, visto se tratar de matéria que não compete a este Tribunal de Contas", registra o parecer. O órgão recomenda ao ministro que determine "o arquivamento".
Bruno Dantas determinou em despacho, três meses depois, que o processo prosseguisse e fossem realizadas novas diligências. "É importante que este Tribunal obtenha dados de outras operações realizadas pelo MPF para fins de comparação, com o intuito de verificar eventual indício de irregularidade em tais pagamentos no âmbito da Operação Lava Jato." Dantas pediu que fossem analisados dados dos últimos 10 anos.
Depois de receber informações da Procuradoria-Geral da República (PGR) e analisar novos dados, a Secex emitiu um segundo parecer, em 2 de junho de 2021, em que voltou a apontar que "não havia indícios de irregularidade" e recomendou que o processo fosse julgado no mérito improcedente.
"Não havendo indícios de irregularidade, a presente representação deve ser considerada improcedente", parecer técnico TCU
"Os dados levantados e enviados pelo MPF a respeito dos pagamentos de diárias e passagens aos procuradores designados para atuarem na Lava Jato também não indicam descumprimento dos dispositivos legais, regramentos administrativos ou elementos que permitam detectar eventual desvio na utilização das indenizações pelos membros, servidores e colaboradores no âmbito da operação", registra o parecer da Secex.
Em 9 de junho, Bruno Dantas emite novo despacho. Novamente discorda do parecer dos técnicos e, dessa vez, afirma ter concluído existir indícios de "irregularidades". "Os indícios são contundentes e suficientes para caracterizar, ao menos, as seguintes irregularidades: falta de fundamentação adequada para escolha do modelo, violação ao princípio da economicidade e ofensas ao princípio da impessoalidade."
O relator cita ainda uma representação do Ministério Público do TCU, feita com base em reportagem sobre os supostos gastos excessivos da força-tarefa, para determinar que a Secex faça mais diligências, "considerando as irregularidades caracterizadas". Pede que se apure a diferença entre custos com diárias e passagens e aqueles que teriam sido gastos em outra forma de atuação da força-tarefa. E a identificação no MPF os autores da proposta de modelo de força-tarefa adotado na Lava Jato, "analisando especificamente o papel do ex-procurador Deltan Dallagnol".
Bruno Dantas afirma no processo que relativamente à força-tarefa em Curitiba, "já haveria 'diversos documentos, amplos e robustos, para a análise determinada no despacho, sem prejuízo de ser necessária alguma complementação pontual e adjacente'". E determinou que "fosse atribuída extrema urgência e prioridade à obtenção das informações", e deu prazo mais extenso para realização de diligências sobre os gastos das demais forças-tarefas, como a do Rio, de São Paulo.
A Secex emitiu mais dois novos pareceres em resposta aos pedidos extras do relator, nos dias 1 e 14 de dezembro de 2021. Num deles, cita que dos 16 itens solicitados pelo relator e apontados como importantes, 12 não foram respondidos. E aponta a necessidade de mais diligências. Dos quesitos solicitados pelo relator, três foram explicados, em parte, e apenas um totalmente levantado - que pedia cópia da autorização de criação da força-tarefa da Lava Jato.
"As informações trazidas aos autos não foram suficientes para sanear o presente processo, razão pela qual se faz necessário realizar nova diligência", conclui a Secex. Para os técnicos, as "informações solicitadas são primordiais para a apuração correta dos elementos que compõem uma eventual responsabilização dos gestores".
Em 12 de abril, Bruno Dantas redige seu voto e leva à pauta o processo, na 2ª Câmara do TCU, que abre uma Tomada de Contas Especial. O relator afirma que "em uma primeira análise, a unidade instrutora reconheceu serem expressivos os valores pagos". "Porém, registrou não ter identificado indícios contundentes de desvio de finalidade ou de outras irregularidades nos valores gastos no âmbito da Lava Jato." O processo vai aprofundar os dados e citou dez membros das forças-tarefas da Lava Jato.
Procurado pela reportagem, o ministro do TCU não se manifestou. No voto, Dantas afirma que em todo período da Lava Jato, as forças-tarefa (Curitiba, Rio, São Paulo, Brasília e PGR) consumiram "cerca de R$ 5,35 milhões". Aponta ainda que no caso de Dallagnol, ele pode ser cobrado por mais de R$ 2 milhões. Para Dantas, "os indícios são contundentes e suficientes para caracterizar, ao menos, as seguintes irregularidades". "Falta de fundamentação adequada para a escolha desse modelo, violação ao princípio da economicidade, porquanto o modelo escolhido mostrou-se mais dispendioso aos cofres públicos, ofensas ao princípio da impessoalidade, tanto na opção pelo modelo mais benéfico e rentável aos participantes quanto na falta de critérios técnicos que justificassem a escolha de quais procuradores integrariam a operação."
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Dallagnol, que não está mais no MPF e será candidato a deputado federal pelo Podemos de Curitiba, afirma que o processo no TCU é "revanchismo" da classe política "que foi acuada pela Lava Jato". "O mais absurdo da decisão do TCU é que o modelo de diárias adotado pela Lava Jato foi sim o mais econômico", afirma Dallagnol. "Mesmo que não fosse, não cabia a mim as decisões sobre o modelo de diárias, nem sua autorização. Isso expõe claramente que alguns ministros do Tribunal estão atuando de forma revanchista contra quem combate a corrupção."
O processo está em fase de defesa. Os advogados dos procuradores têm até início de junho para apresentar seus argumentos. Um dos pontos que estão sendo questionados é a ausência de alguns nomes na lista de responsáveis pelo modelo, como a da ex-procuradora Raquel Dodge, falta de responsabilidade dos alvos pelas autorizações, falta de competência do TCU para julgar o caso, entre outros. Na semana passada, Dantas negou novas prorrogações de prazos pedidos pelos defensores. Ontem, Dallagnol e outros alvos receberam notificação de cobrança dos valores enviadas pelo Tribunal.