O ex-vendedor de cachorro-quente que quer derrubar Putin
Conheça a história do grupo Wagner, mercenários que se rebelam contra a Rússia
Em 2014, um grupo de homens armados tomou a Crimeia e parte do leste da Ucrânia. A Rússia quis convencer o mundo de que se tratava de uma rebelião interna, daqueles destas regiões que não queriam um alinhamento com os ucranianos e o restante da Europa.
Eram, na verdade, os primeiros passos do que hoje conhecemos como Grupo Wagner, o maior exército privado de mercenários do planeta. Nove anos atrás, eles eram uma peça secreta da GRU, o Serviço de Inteligência do Ministério da Defesa da Rússia e parte de um plano maior que usou o momento de fraqueza política em Kiev e a insatisfação da população com as lideranças ucranianas.
O chefe dos mercenários, Yevgeny Prigozhin, é uma daquelas figuras de história singular, que conseguem crescer em determinados meios oficiais que, por um lado, usam a religião e o nacionalismo e, por outro, os mais moralmente questionáveis instrumentos e personagens.
O chefe do grupo Wagner é um ladrão condenado. Cumpriu 13 anos de prisão por roubo, fraude e corrupção de menores, a quem também incentivava roubar. Agia principalmente em São Petersburgo, onde nasceu ainda na época da União Soviética.
Depois da cadeia, ele virou vendedor de cachorro-quente. O negócio evoluiu e tornou-se um restaurante, que ganhou muita fama e passou a receber celebridades. Foi onde ele encontrou Vladimir Putin. Da amizade, vieram contratos no governo para servir alimentação ao exército. Dessa proximidade com o líder russo, nasceu a ideia de um grupo que ajudasse em operações militares, mas não teria vínculo oficial com o governo russo. Era um bom negócio pros dois.
O que vemos agora é a cria se voltando contra o criador. É a implosão de um sistema de divisão interna que Vladimir Putin deixou se intensificar nos últimos meses para se manter soberano sobre a rede de dúvidas, intrigas e insegurança entre seus subalternos.
O jornalista Renan de Souza é autor de um livro de título longo e muito atual: "Empresas militares privadas e a terceirização da guerra: reexaminando o racional da guerra em direção à paz". A obra é fruto de um trabalho de mestrado na Universidade Goldsmith, em Londres e foi publicada no ano passado.
O autor avalia que "Putin está provando do próprio veneno" e pensa que o que vai acontecer nos próximos dias depende da adesão ou não do Exército à revolta liderada pelo mercenário. Renan de Souza diz que a relação do presidente russo com o grupo Wagner é marcada por uma forte dualidade.
"O Putin precisa deles para conseguir avançar onde seu exército não consegue. As violações do Wagner são difíceis de serem julgadas por leis internacionais. E o Wagner precisa da proteção e do dinheiro de Putin", afirma.
"O Wagner funciona bem porque sempre operou além das leis, numa posição meio obscura". Mas está aí, segundo o jornalista, uma situação que tinha potencial de ameaçar o próprio Putin. "Esse é o perigo dos exércitos militares privados. Eles trabalharam procurando dinheiro, lucro e não na defesa de um Estado soberano".
As críticas públicas de Yevgeny Prigozhin à Federação Russa não começaram agora. Há meses, ele vem denunciando as condições precárias das tropas russas e dos seus mercenários. No mês passado, defendeu a execução do Ministro da Defesa do país, Sergei Shoigu, a quem acusou de enganar Putin, inclusive com o argumento de que a Ucrânia e a Otan atacariam a Rússia e que serviu de argumento para a invasão do país vizinho.
Prigozhin ganhou tanta força e 2014 que seu grupo foi usado em outras missões militares importantes para a Rússia, como a guerra da Síria, onde Vladimir Putin se aliou ao ditador Bashar Al Assad para combater os rebeldes financiados pelos Estados Unidos.
Os mercenários também atuaram em vários países africanos, como Líbia, República Centro Africana e Moçambique, onde Putin não quis envolver diretamente o seu exército, mas enviou seu batalhão privado para ganhar influência na região. Na Venezuela, chegaram a dar suporte à segurança de Nicolas Maduro.
O grupo Wagner, com o qual Prigozhin negou ter vínculo até o ano passado, também tem um braço cibernético que, segundo os Estados Unidos, foi usado para espalhar desinformação e interferir nas eleições que levaram Donald Trump ao poder, em 2016.
Em 2014, o grupo Wagner tinha pouco de 5 mil pessoas e era formado majoritariamente por veteranos das Forças Armadas e agentes de Forças Especiais. Depois da invasão da Ucrânia no ano passado e das primeiras derrotas russas, especialmente na região de Kiev, o grupo passou a ter mais de 50 mil pessoas, segundo relatório de Inteligência do Ministério da Defesa do Reino Unido.
Na nova configuração, 80% dos integrantes saíram das prisões da Rússia, segundo o Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos. Foram essenciais na conquista de Bakhmut, no leste da Ucrânia. Considerado descartável pelos líderes militares, este grupo foi exposto às mais arriscadas operações militares, tem o maior número de mortes nos últimos meses e agora marcha em direção a Moscou para derrubar o presidente.
A revolta de Prigozhin chegou a um ponto sem volta quando algumas posições dos mercenários foram bombardeadas pelos próprios russos. Foi o estopim para uma insatisfação que ganhava força de rebelião nas linhas de frente de batalha e que foi precedida por um movimento do próprio Ministério da Defesa, determinando que todos os mercenários teriam que assinar contratos e passar a responder diretamente ao governo e não mais ao Grupo Wagner a partir do início de julho.
A liberdade do chefe dos mercenários para criticar as elites e as lideranças militares da Rússia nos últimos meses foi interpretada por muitos analistas como uma jogada que tinha a anuência e a concordância do próprio Putin. Esta hipótese ainda não pode ser descartada.
O que acontece agora, no entanto, mostra que o presidente russo perdeu o controle da situação. Vladimir Putin chegou ao poder no ano 2000 e nunca sofreu uma ameaça tão forte quanto agora. Ironicamente, até que se prove o contrário, Putin luta por sua sobrevivência não contra a Otan ou contra a Ucrânia, mas contra o ex-vendedor de cachorro-quente que ele alçou ao poder.