Retomar pragmatismo será a chave para Itamaraty recuperar imagem do Brasil
Lula terá que restabelecer relações desgastadas nos últimos anos
Em 1º de janeiro de 2023, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) será empossado -- pela terceira vez -- presidente da República. Com a faixa, o petista e seus ministros receberão uma série de desafios para o futuro do Brasil. Entre eles, retomar o prestígio e a credibilidade da nossa diplomacia.
Desgastado após quatro anos de política externa ideologizada, principalmente no período de Ernesto Araújo, o Itamaraty, que ficará sob o comando do embaixador Mauro Vieira, tem a árdua tarefa de conseguir reassumir diversas tradições das quais nos afastamos -- de forma inédita -- como, por exemplo, a nossa presença nas organizações internacionais, o protagonismo na agenda ambiental, além de restabelecer laços com a Europa e Estados Unidos, voltar a ser protagonista regional e olhar, com mais interesse do que nunca, para a Ásia e a África.
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Esse retorno à agenda internacional deve começar já na posse. Em sua primeira coletiva como novo chanceler, Mauro Vieira, acompanhado pelo também embaixador Fernando Luis Lemos Igreja, responsável do Itamaraty pela cerimônia, confirmou a presença de, ao menos, 17 chefes de Estado no evento.
Devem estar presentes os presidentes da Alemanha, Angola, Argentina, Bolívia, Cabo Verde, Chile, Colômbia, Equador, Espanha (virá o Rei Felipe VI), Guiana, Guiné Bissau, Paraguai, Portugal, Suriname, Timor Leste, Uruguai e Zimbábue. Um representante dos Estados Unidos também estará na posse. Em seguida, ainda no primeiro semestre do seu mandato, Lula deve viajar para os Estados Unidos, Argentina e China. Os países são os principais parceiros comerciais do Brasil.
Somente no período acumulado de Janeiro/Novembro 2022, as vendas para a China atingiram US$ 84,62 bilhões; US$ 33,83 bilhões para os Estados Unidos; e US$ 14,38 bilhões para a Argentina, segundo dados do ministério da Economia.
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Mas a mera presença de Lula, que durante seus dois primeiros mandatos conseguiu construir pontes e permanece com uma imagem positiva no sistema internacional, não será suficiente para reconstruir imediatamente a imagem da diplomacia brasileira.
Juliano Cortinhas, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), acredita que será necessária uma rápida mudança e que decisões sobre assuntos relevantes terão de ser tomadas ainda no início do mandato.
"A chegada do Lula é muito positiva, mas é preciso que o Brasil faça um esforço de retomar parcerias, de mostrar que efetivamente houve uma mudança, ou seja, fazer mais em termos de proteção do meio ambiente, retomar metas de redução das emissões de carbono, das queimadas na Amazônia. É preciso mostrar comprometimento efetivo. Por exemplo, retomar viagens internacionais será importante. O Lula falou que vai retomá-las assim que tomar posse e isso é importante para dar base a esse momento inicial que vai ser favorável ao Brasil pela simples presença dele. É preciso rechear essa imagem com dados, com decisões, com fatos", afirma o docente, que também pontuou a série de desafios e desafetos deixados pelo governo Bolsonaro no cenário internacional:
"O Bolsonaro abandona uma série de tradições da nossa diplomacia, uma tradição de respeito aos princípios de direito internacional consagrados na carta da ONU. Várias organizações internacionais foram simplesmente abandonadas pelo Brasil em detrimento de uma política externa ideologizada. Também estamos em dívida. Nunca o Brasil teve um nível de endividamento tão grande com essas organizações. Deixamos de comparecer a uma série de reuniões, deixamos de assinar uma série de protocolos de acordos, afastamos o Brasil de um protagonismo que tínhamos na esfera ambiental. Deixamos de, por exemplo, trabalhar questões que sempre foram fundamentais para nós, como a fome, questões de gênero e Direitos Humanos."
A ideologização das relações exteriores também prejudicou o Brasil economicamente. A China, principal parceiro econômico e fonte de grandes investimentos no país, foi atacada mais de uma vez por Bolsonaro. Ainda no primeiro ano de mandato, Bolsonaro, alinhado ao então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, teceu duras críticas ao regime comunista de Pequim. Durante a pandemia, duvidou da eficácia da vacina produzida por laboratórios do país.
A relação com a União Europeia foi desgastada, principalmente, pelas rusgas diplomáticas. A começar pelo congelamento das doações ao Fundo Amazônia pela Alemanha e Noruega, depois que Ricardo Salles, então Ministro do Meio Ambiente, anunciou que iria extinguir dois órgãos reguladores do fundo. O episódio em que Bolsonaro comentou sobre a aparência da esposa do presidente da França, Emmanuel Macron, lhe deu a fama de sexista no continente e agravou a crise diplomática com o país, que vinha denunciando a condução da política ambiental do Brasil devido às queimadas na Amazônia.
"Houve diferenças com os principais líderes das potências Ocidentais do mundo, então isso nos afasta da mesma forma que nos afastamos de países africanos, e do próprio Oriente Médio com uma aproximação completamente mal calculada com Israel, a ponto de anunciar a mudança na sede da nossa Embaixada. Enfim, houve várias decisões que nos colocaram em um lugar pior do que tínhamos tradicionalmente no mundo e que nos afastaram de parceiros que eram importantíssimos. Eu nem citei, mas as relações com a China foram extremamente prejudicadas por uma série de declarações absurdas do Ernesto Araújo, e depois da troca isso foi amenizado, mas também não se solucionou essas diferenças. Perdemos muito. Precisamos retomar a normalidade, deixar o Itamaraty trabalhar.", ressalta Cortinhas.
O professor também esclarece que até mesmo o relacionamento com os Estados Unidos foi prejudicado. "Bolsonaro não se aproximou dos Estados Unidos, ele se aproximou de Donald Trump. Tanto que depois da derrota de Trump nas urnas, a nossa relação com os Estados Unidos ficou completamente alijada. Com o Biden nós não temos essa relação, porque essa relação não foi construída com os Estados Unidos, ela foi construída entre Trump e Bolsonaro. E a partir de uma aproximação ideológica entre eles e não a partir dos interesses nacionais, da mesma forma isso ocorreu com a União Europeia."
Isolado, o Brasil deixou de ser convidado para participar da Cúpula do G7 -- que reúne as principais economias do mundo -- por três anos consecutivos. Em contrapartida, Bolsonaro se alinhou a líderes do Oriente Médio. Em três anos, foi duas vezes aos Emirados Árabes Unidos e Catar, mas diminuiu a frequência de viagens para América do Sul e Europa e será o único chefe do Executivo dos últimos anos a não visitar a África.
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A necessidade de retomar as relações com a África e os países no nosso entorno foi, inclusive, um dos temas abordados pelo ex-embaixador do Brasil em Londres e Washington, o diplomata Rubens Barbosa, em entrevista ao SBT News ainda no período das eleições de 2022.
Principal liderança da América Latina, o Brasil se retirou de importantes espaços regionais, escanteando organizações intergovernamentais da região como Unasul (União de Nações Sul-Americanas) e Celac (Comunidade dos Países Latino-Americanos e Caribenhos) e deixando de atuar de forma construtiva em relação ao seu entorno, que vive uma nova "Onda Rosa" com a emergência de governos de esquerda no Chile, Argentina, México e Colômbia. Barbosa alertou para as oportunidades comerciais que o país está perdendo tanto na área agrícola como na área industrial ao não nutrir as relações criadas nos últimos anos e reforçou a necessidade do Brasil se manter equidistante das disputas China-EUA e dos conflitos entre o Ocidente e a Eurásia, priorizando o multilateralismo.
"O Brasil sempre foi um player importante nas negociações internacionais, via organizações multilaterais, então a gente não tem escolha. Nós não podemos ideologizar, como foi feito recentemente, as questões de costumes, por exemplo, que são tratados nesses organismos. Não há alternativa. Qualquer que seja o governo que vem aí, ele vai continuar a defender o multilateralismo. Eu acho que não há alternativa para o multilateralismo para países como o Brasil, que não tem excedente de poder", afirmou o diplomata.
Para o docente da UnB, essa relação com a África deve ser retomada por Lula, que irá priorizar a diversificação de parceiros comerciais.
"O Lula já fez isso nas suas gestões anteriores, a diversificação de parceiros comerciais. Ele retornou à África que era um continente com o qual tínhamos relações muito escassas, muito fracas pelo potencial que nós temos. É claro que a gente tem que entender que a China está muito presente lá, e nesses anos todos de afastamento do Brasil, ela se fez ainda mais presente, mas o Brasil tem muito a oferecer e tem muito a receber também dos países africanos. E com eles, nós podemos ter uma relação mais igual e não uma relação tão desigual quanto a que temos com os Estados Unidos, por exemplo, e com outras potências europeias.", disse.
Ainda segundo Cortinhas, o novo governo terá que retomar o pragmatismo que sempre marcou a atuação da diplomacia brasileira.
"O momento agora é de retorno à normalidade, ou seja, ouvir o Itamaraty, ter o Itamaraty como protagonista na formulação da política externa e não os ideólogos do governo, como fez o Bolsonaro. E retornar ao pragmatismo, ou seja, nós temos que negociar com quaisquer países que tenham algo a oferecer, independentemente da sua ideologia, independentemente da sua inclinação política. O Brasil precisa ser pragmático, nós precisamos acelerar o processo de aquecimento da nossa economia, de recuperação, após anos de crise com a covid, com crises financeiras internacionais, guerra da Ucrânia, e tudo que foi muito prejudicial a nós", reforçou.
Ao que tudo indica, esse é o caminho que deverá ser traçado pelo novo governo. O ministro das Relações Exteriores indicado por Lula pontuou, na 4ª feira (14.dez), as diretrizes que recebeu do presidente eleito para "reconstruir pontes" com a América do Sul e América Latina. Vieira também anunciou a reabertura da Embaixada do Brasil em Caracas, na Venezuela.
Reaproximar e reconstruir pontes com parceiros tradicionais do Brasil, como Estados Unidos, China e União Europeia serão prioridades do governo Lula, segundo o diplomata, que também afirmou que Lula quer recriar laços com as nações da África, recuperando projetos de cooperação, além de retomar a atuação em fóruns regionais, como a Celac, na qual a presença do presidente eleito na próxima cúpula, que acontecerá em janeiro de 2023, na Argentina, já está confirmada.