"Novo arcabouço fiscal apresenta desafios ao MP de Contas", diz procuradora-geral
Primeira mulher a ocupar o cargo na história, Cristina Machado concedeu entrevista ao SBT News
Sancionado na 5ª feira (31.ago) pelo presidente Lula (PT), o chamado novo arcabouço fiscal -- que substitui o teto de gastos -- apresenta desafios ao Ministério Público de Contas (MPTCU), e desafios estes que se relacionam com a busca de recuperação da credibilidade fiscal do país, perdida nos últimos anos. Isso é o que afirma a procuradora-geral do MPTCU, Cristina Machado.
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Segundo Cristina, "logo de início, o órgão deverá estar atento ao cumprimento da meta de zerar o déficit primário, já para 2024, plano ambicioso, de difícil consecução para o Governo Federal". Ela acrescenta que "um complicador nesse ponto e que também deverá ser objeto de atenção é o fato de o novo arcabouço fiscal necessitar do crescimento contínuo de receitas para ter sucesso, tendo, por outro lado, mantido despesas de grande vulto fora do Teto, como o Fundo Constitucional do DF e a complementação da União ao Fundeb".
"Nesse contexto, devemos estar atentos à sustentabilidade da dívida pública", pontua. Procuradora-geral do MPTCU desde 23 de agosto de 2017 e primeira mulher a ocupar a posição em 130 anos de existência do Ministério Público de Contas, Cristina concedeu uma entrevista ao SBT News.
Outro tema abordado foi a reforma tributária, já aprovada pela Câmara e em tramitação no Senado. "As mudanças no Sistema Tributário Nacional se propõem a superar a complexidade e ineficiência da tributação sobre o consumo no Brasil, além de constituir fator essencial para a própria credibilidade das regras fiscais", ressalta.
"As alterações, caso mantidas no projeto encaminhado ao Senado Federal (PEC nº 45/2019), trarão complexidades inéditas à atuação do Tribunal de Contas da União e do MPTCU, dentre as quais destaco as repercussões na distribuição das receitas tributárias entre os entes federativos e os novos contornos ambientais a serem inseridos na tributação no Brasil".
Ainda de acordo com ela, outro ponto "bastante caro" ao TCU e sobre o qual o MPTCU tem atenção permanente, tendo sido objeto de destaque nas duas últimas manifestações que a procuradora-geral fez sobre as contas do presidente da República, "são as renúncias de receitas tributárias". "A reforma tributária sugere severa restrição à concessão de benefícios fiscais, mas, por outro lado, admite muitos regimes favorecidos excepcionais. Deve-se avaliar até que ponto a nova conformação, de fato, reduzirá o elevadíssimo volume de gastos tributários, que já atinge mais de R$ 640 bilhões".
Cristina pontua que, dessa forma, o Ministério Público de Contas "deverá se debruçar cuidadosamente sobre os efeitos combinados nas contas públicas do novo arcabouço fiscal, que possui sensível viés expansionista, e da reforma tributária, com potencial para expandir a carga tributária nacional".
Em suas palavras, "o MPTCU não se furtará a trabalhar, nos limites de sua competência, para contribuir para o esperado sucesso dessas duas relevantes modificações legais".
Ministério Público de Contas
O MPTCU, oficialmente chamado de Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, é um órgão que tem como atribuição promover e fiscalizar o cumprimento e a guarda da Constituição e das leis, principalmente no que se refere à fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial".
De acordo com Cristina, ele possui "um importante papel na defesa dos valores democráticos insculpidos na Constituição Federal, na particular seara da jurisdição de contas". "Não tenho dúvidas de que a nossa atuação na vigilância da boa e regular aplicação dos recursos públicos pode contribuir para tornar o Brasil um país mais justo e desenvolvido".
Ela ressalta que "a boa gestão dos escassos recursos públicos faz toda a diferença, principalmente para a população menos favorecida". "Saúde, educação, saneamento básico, segurança pública, entre outros serviços que devem ser fornecidos pelo Estado serão tanto melhores quanto mais bem administrados".
E o órgão, acrescenta, "deve estar atento e vigilante a quaisquer desvios ou ineficiências na gestão desses recursos, de modo a poder atuar de forma tempestiva na salvaguarda do interesse público".
Novo mandato
Cristina está no quarto mandato como procuradora-geral do MPTCU. Lula assinou em julho o decreto a reconduzindo ao cargo, e a cerimônia de posse para o novo período ocorreu em 16 de agosto. Ela diz se orgulhar muito de ser a primeira mulher a ocupar o posto e esperar que essa "conquista pessoal possa servir de inspiração para outras mulheres". "Mostrar a ela que é possível sermos bem-sucedidas profissionalmente mesmo diante de todos os obstáculos que enfrentamos em uma sociedade ainda marcadamente patriarcal".
Ela prossegue: "É com satisfação que a cada dia vejo as mulheres tomando consciência da sua força, dos seus direitos. Como já disse em outra ocasião, 'queremos ser inteiramente respeitadas quanto às nossas diferenças e que as nossas especificidades, sejam biológicas, comportamentais ou socioafetivas, possam ser compreendidas e acolhidas por todos, mulheres e homens, e que não sejam utilizadas como pretexto para vedar nosso acesso à cidadania integral ou como obstáculo para que alcancemos nosso pleno desenvolvimento como seres humanos'".
Segundo Cristina, o debate sobre a igualdade de gênero e assédios sexual e moral "está na ordem do dia" na sociedade brasileira e já houve avanço, mas "ainda estamos longe do ideal". "Um exemplo disso é o aumento do número de feminicídios. Mulheres ainda são consideradas como propriedade e perdem a vida de forma brutal, deixando seus filhos órfãos, não raras vezes com comprometimento da saúde mental e do próprio futuro".
Dessa forma, afirma, "ainda há muito por fazer, mas esse é um caminho sem volta e o Ministério Público de Contas e o Tribunal de Contas da União são atores importantes no cenário nacional e que, com certeza estão fazendo a diferença, trazendo o debate para dentro da própria instituição e promovendo o diálogo sobre esses temas com a sociedade".
No novo mandato, ela pretende investir na divulgação do MPTCU, aprimorando a página do órgão na internet e o perfil dele no Instagram, e intensificando as participações em eventos externos que permitam ao Ministério Público de Contas divulgar o seu trabalho. "Como eu disse no recente evento em que comemoramos 130 anos, ainda somos, não raras vezes, confundidos com o Ministério Público da União por alguns setores da mídia, pelos cidadãos em geral e até mesmo dentro da própria administração pública".
A procuradora-geral pretende ainda "aperfeiçoar o intercâmbio com os Ministérios Públicos de Contas de outros entes federados, de modo a propiciar a troca de experiências e o aprimoramento da gestão da informação".
"Nesse contexto, destaco o lançamento há duas semanas da Rede MPContas, que visa estabelecer uma rede de compartilhamento de informações entre os vários Ministérios Públicos de Contas - da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios - de modo a possibilitar um melhor acompanhamento da aplicação dos recursos públicos nas diversas unidades da federação".
Nos processos de controle externo, de acordo com ela, os processos de solução consensual devem merecer atenção especial. Esse novo formato de atuação do TCU, ressalta, está em aprimoramento, mas promete ser "um grande avanço" para o desempenho da Corte de Contas.