Uso de trem de "dois andares" no Brasil não tem relação com o governo Bolsonaro
Post que viralizou no Facebook usa vídeo real para estabelecer relação enganosa entre um investimento feito por empresa privada com ações do governo federal
Um post compartilhado nas redes sociais associa de forma enganosa um vídeo de um trem double-stack (que transporta dois andares de vagões) com o governo de Jair Bolsonaro (PSL). As imagens são reais e de fato mostram a circulação de um trem desse tipo na ferrovia que liga Sumaré (SP) a Rondonópolis (MT), mas o investimento é privado e não ocorreu no atual governo.
O Comprova apurou que não é possível estabelecer nenhuma relação entre o double-stack e o governo Bolsonaro, visto que o investimento do projeto foi 100% privado, divulgado e iniciado em março de 2018, antes mesmo da confirmação da candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência, o que só aconteceu em julho do mesmo ano.
Trens double-stack da Brado Logística começaram a operar neste ano entre os dois municípios pelas linhas férreas Ferronorte e Malha Paulista, concedidas à Rumo Logística, que tem a Brado como subsidiária. A viagem inaugural entre Sumaré e Rondonópolis foi feita no dia 19 de junho, mas não se trata da primeira operação de locomotivas como essa no Brasil. A primeira ocorreu em 2013.
Esse tipo de locomotiva consegue transportar cargas em dois níveis e tem capacidade para empilhar até três contêineres.
A publicação diz: “Bolsonaro entrou o Brasil andou”. O vídeo, que na verdade é de autoria do canal “No Trilho”, teve viralização na publicação da página do Facebook “Movimento do Povo Brasileiro” em 17 de outubro. Até a tarde de 22 de outubro, o post acumulava mais de 68 mil visualizações. Ele foi deletado pela página em 23 de outubro.
Para o Comprova, o conteúdo enganoso é aquele que confunde ou que seja divulgado para confundir, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Como verificamos
Para verificar a publicação, o Comprova entrou em contato com a Rumo Logística, concessionária da Ferronorte e da Malha Paulista, e a Brado Logística, subsidiária da Rumo que faz operações de contêineres na linha férrea. As empresas confirmaram que o vídeo apresentado na postagem refere-se à primeira viagem com utilização de vagões double-stack operado por elas.
No vídeo aparece uma marca d’água do canal No Trilho. Contactado pelo Comprova via Instagram, o responsável pelo canal confirmou que o conteúdo foi produzido por eles e publicado no canal oficial do YouTube, e que esse vídeo também chegou a ser fornecido para a afiliada do SBT no Mato Grosso do Sul (SBT MS).
Depois de descobrir que o vídeo era verdadeiro, o Comprova procurou o Ministério da Infraestrutura, a Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF) e a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) para entender se essa operação também seria a primeira feita em uma ferrovia brasileira. A ANTF e a ANTT explicaram que não, já que a MRS iniciou operações eventuais com vagões double-stack em 2013 entre as duas margens do Porto de Santos, mas desde então elas foram descontinuadas.
Para uma visão mais aprofundada sobre ferrovias no Brasil, ainda entramos em contato com o professor Bernardo Carvalhaes, especialista em Engenharia Ferroviária do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes). Ele explicou que o uso dessa tecnologia de contêineres de dois andares é de fato mais produtiva, já que o modelo permitiria uma operação mais sustentável e econômica, mas isso demanda adequações nas linhas ferroviárias.
Isso geraria um alto custo, seja para o governo federal, seja para iniciativa privada, uma vez que o custo-benefício do transporte de grãos ou outras cargas, exceto o minério de ferro – que é altamente rentável – não corresponde ao investimento necessário para construção e adequação das ferrovias brasileiras.
O Comprova ainda entrou em contato com o “Movimento do Povo Brasileiro” responsável pela publicação duvidosa. O objetivo foi questioná-los sobre a veracidade do vídeo e a associação do post ao governo Bolsonaro.
Por telefone, um dos integrantes da página, Marcos, explicou que eles postaram o vídeo para mostrar a primeira viagem de trens double-stack, no trecho que compreende Rondonópolis e Sumaré.
Ao Comprova, eles também disseram que não tiveram a intenção de dizer que a operação dos trens ocorre graças a ações ou investimentos do governo Bolsonaro, mas que foi apenas um jeito de dizer que, com a entrada dele, o Brasil passou a ir para a frente.
O “Movimento do Povo Brasileiro” justificou a associação ao governo afirmando que o conteúdo publicado estava na página do ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas. Em seguida, o grupo encaminhou ao Comprova o link da página oficial do ministro.
O vídeo publicado por Freitas não corresponde ao mesmo vídeo da publicação do “Movimento do Povo Brasileiro” checado pelo Comprova. Questionados sobre a diferença dos vídeos, o “Movimento do Povo Brasileiro” não respondeu as mensagens e logo deletou a publicação no Facebook.
Além disso, eles enviaram links de reportagens sobre o contrato de concessão de um novo trecho da Ferrovia Norte-Sul, assinado com a Rumo pelo governo Bolsonaro, com o objetivo de justificar os investimentos do governo no modal ferroviário. Essa nova concessão da Rumo, porém, é de outra linha férrea (a Norte-Sul), e não a Malha Paulista ou a Ferronorte ou, esta última já administrada pela Rumo (antiga Ferronorte S.A e depois América Latina Logística) desde 1989 e que passou a operar com double-stacks agora.
Você pode refazer o caminho da verificação do Comprova usando os links para consultar as fontes originais ou visualizar a documentação que reunimos.
Esse de fato foi o primeiro trem de dois andares a operar na ferrovia?
Sim. O trem cargueiro de dois andares iniciou as operações entre Sumaré (SP) e Rondonópolis (MT), em 19 de junho, segundo informou a Brado/Rumo, transportando 68 vagões double-stack, totalizando 136 contêineres. O trecho tem 1.400 quilômetros.
O Comprova apurou que a Rumo fez um investimento de cerca de R$ 60 milhões para comprar 148 vagões double-stack e adequar a ferrovia para permitir essa operação. Eles transportam mais de 70 tipos de produtos movimentados por contêineres, de cargas agrícolas e industriais até bens de consumo.
As empresas afirmam que a eficiência do modelo aumentou em 40% a capacidade do trecho e que ele “permite uma operação mais sustentável, com ganhos significativos de produtividade e rentabilidade, transportando mais contêineres num mesmo trem e reduzindo custos operacionais”, conforme o primeiro anúncio do investimento publicado pelo site da empresa.
Acionada pelo Comprova, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) explicou que esse foi, de fato, o primeiro trem de caráter regular (com horário e circulação definidos e autorizados pela ANTT) com essa característica a operar no país, porém ressaltou – bem como a Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF) – que a MRS já havia feito operações não regulares usando double-stack no país. A ATNF explicou que a primeira operação com double-stack no Brasil foi em abril de 2013, pela MRS, de fato com operações intermitentes, em um pequeno trecho ligando as duas margens do Porto de Santos (Santos e Guarujá). Esse serviço funcionou por alguns meses, mas depois foi interrompido pela empresa, que voltou a usar vagões comuns.
Portanto, é possível dizer que a operação de vagões de dois andares da Rumo/Brado é a pioneira em trajetos de longa distância no país e, ainda, a primeira regular, mas não a pioneira no Brasil.
Há ligação disso com o governo Bolsonaro?
Não. A Brado/Rumo viabilizou o projeto e apresentou a aquisição de 74 vagões de dois andares durante a 24ª edição da Intermodal South America, em março de 2018 – quando Bolsonaro ainda nem tinha sido oficializado como candidato a presidente. Essa iniciativa foi custeada pela empresa, sem nenhum investimento do governo federal, à época comandado pelo ex-presidente Michel Temer (MDB)
“O vagão foi desenvolvido de maneira exclusiva e customizada para atender as necessidades dos nossos clientes. O double stack faz parte de uma nova fase no plano de expansão da Brado. Projetando aumentar em 30% os negócios da companhia em 2018”, afirmou o diretor Comercial e de Operações da Brado, Marcelo Saraiva, na ocasião.
O governo federal de fato está conduzindo um amplo pacote de ações para desenvolver o modal ferroviário brasileiro, mas não existe relação com essa operação específica.
Além da concessão já assinada da Norte-Sul, apresentação do Ministério da Infraestrutura obtida pelo Comprova aponta que a intenção do governo é de, até 2020, assinar contratos de concessão das linhas férreas Fiol e Ferrogrão. O Planalto também quer renovar antecipadamente concessões de outras ferrovias (da Rumo, Vale, MRS e VLI), estipulando em alguns casos que as concessionárias façam investimentos na construção de novas estradas de ferro, como a Fico (no Centro-Oeste) e Ferrovia Vitória-Rio (no Sudeste).
Em algumas dessas renovações de concessões, como a da Malha Paulista, da Rumo, a ANTF explicou que ela poderá prever o investimento em trens double-stack como uma solução para dobrar a carga movimentada na estrada de ferro. Os contratos de prorrogação estão no momento sob análise do Tribunal de Contas da União (TCU).
Por que mais ferrovias no país não operam trens de dois andares?
O Ministério da Infraestrutura explicou que nem toda ferrovia pode receber esse tipo de vagão. Isso porque o double-stack requer adequação, entre outras coisas, de túneis.
De acordo com Bernardo Carvalhaes, especialista em Engenharia Ferroviária do Ifes, grande parte da malha ferroviária brasileira não está adequada para receber esse tipo de tecnologia logística. “Esses trens podem atingir alturas superiores a 6 metros, o que demanda compatibilidade de túneis, pontes, entre outras instalações ao longo da ferrovia. Também há a questão da inscrição em curvas: como o comprimento entre truques (conjunto de rodas) do vagão é maior que os vagões tradicionais, os vagões double-stack não inscrevem em curvas com raios pequenos, precisaria de raios de curva iguais ou superiores a 90 metros.”
O professor ressaltou ainda que o modelo de negócio e a demanda de operação de carga no Brasil mudaram de forma considerável durante as décadas. Para ele, o investimento feito no modal ferroviário brasileiro não corresponde à nossa realidade atual. Principalmente, porque hoje no país, o principal meio de transporte de carga é operado por rodovias.
“O problema é que temos no Brasil ferrovias que foram construídas há mais de 100 anos e as demandas de projeto de quando a maioria foi construída – antes da década de 70 – eram outras, pois na época circulavam vagões menores.”
O Comprova produziu um videográfico para explicar a dificuldade dos trens de ‘dois andares’ operarem no país.
Repercussão nas redes
O Comprova verifica conteúdos duvidosos sobre políticas públicas do governo federal que tenham grande potencial de viralização.
A publicação foi feita pela página “Movimento do Povo Brasileiro” em 17 de outubro. Até o dia 22, tinha mais de 68 mil visualizações, 3,1 mil curtidas e 2,3 mil compartilhamentos na rede social. A publicação foi deletada pelo perfil no dia 23 de outubro pouco após contato da equipe do Comprova pedindo esclarecimentos sobre a origem do vídeo.
O presidente Jair Bolsonaro também publicou no Twitter um trecho do mesmo vídeo no dia 21 de outubro. Já o filho do presidente, o vereador do Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro, também publicou o vídeo em seu Twitter no dia 20, mas eles não afirmaram nas publicações que se tratava de ação do governo. Somados, ambos os tuítes tiveram mais de 50 mil curtidas.
Investigação e verificação
SBT e A Gazeta participaram desta investigação e a sua verificação, pelo processo de crosscheck, foi realizada pelos veículos GaúchaZH, Correio, Poder 360, Estadão, Folha e Sistema Jornal do Commércio.
Projeto Comprova
Esta reportagem foi elaborada por jornalistas do Projeto Comprova, grupo formado por 24 veículos de imprensa brasileiros, para combater a desinformação. Em 2018, o Comprova monitorou e desmentiu boatos e rumores relacionados à eleição presidencial. A edição deste ano está dedicado a combater a desinformação sobre políticas públicas. O SBT faz parte dessa aliança.
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